03/11/2008

A SAGA DOS BURKE

1 - RAÍZES - (1170-1919)

Os Antepassados dos Burke & Roggemann

A família dos Burke no Brasil, do ponto de vista genético, começou de fato como família Burke & Roggemann. Ela pode ser vista como uma árvore nascida em solo brasileiro, mas cujas raízes mais profundas encontram-se enterradas nos Estados Unidos, na Irlanda e na Alemanha (antiga Prússia). Da Irlanda veio a linhagem dos Burke, e da Alemanha a linhagem dos Roggemann. Essas duas raízes se fundiram duplamente, nos Estados Unidos, quando Peter Sebastian Roggemann se casou com Theodora Margaret Burke e John Ulic Burke se casou com Emma Anna Roggemann.(Peter era irmão de Emma, e Theodora irmã de John)
Devido ao costume patriarcal de se colocar o sobrenome do pai e não o da mãe nos filhos, a árvore nascida do casamento de Peter Sebastian Roggemann com Theodora Margaret Burke se tornou a família Roggemann (desenvolvida nos EUA), enquanto que a árvore nascida do Casamento de John Ulic Burke com Emma Anna Roggemann se tornou a família Burke, desenvolvida no Brasil, a partir de 1919.
As histórias registradas das origens mais remotas das duas famílias começam, do lado dos Burke, na Irlanda, em 1170, com a chegada de um imigrante da família de Burgo vindo da Normandia (ver mais nas notas no final deste capítulo e no Apêndice). Somente centenas de anos mais tarde é que aparece o primeiro registro oficial de um Burke irlandês possivelmente mais diretamente ligado aos Burke brasileiros, com Dominick Burke (1694-1764). Do lado dos Roggemann o registro mais antigo é de Henneke Roggemann, na Prússia, em 1490.
Apesar da existência de uma vasta documentação a respeito dos vários ramos de Burke na Irlanda, a linha de ascendência direta dos Burke brasileiros é muito mal documentada. Dela constam apenas: Dominick Burke (1694-1764), que casou com Elizabeth Comerford; Peter Ulic Burke (1798-1868); Peter Nicholas Burke (1829-1905), que emigrou em 1850 para os EUA, onde se casou com Jane Elizabeth Quin (1837-1925), nascida em Nova York, filha de Edward Quin (1794-1855) e Margaret Mary Kernan (1813-1844); Charles Francis Paul Burke (1861-1935) e John Ulic Burke (1891-1978), que casou com Emma Anna Roggemann (1895-1989), e que emigrou para o Brasil em 1919.
Peter Nicholas Burke (1829-1905) teve seis filhos nos EUA: Edward Quin Burke (1859-1913); John Ulic Burke (1860-1893); Charles Francis Paul Burke (1861-1935); Margaret Mary Burke (1863-1943); Sarah Burke (1865-1955) e Thomas Daly Joseph Burke (1868-1955).
Charles Francis Paul Burke, nascido em 09/10/1861, em Nova York, casou em 1887 com Henrietta Elizabeth Genevieve Blume, nascida em 1864 (filha de Theodor Blume e Caroline E. André). Eles tiveram os seguintes filhos: Theodora (Theo) Margaret Mary Burke (1888-1961), Florence Mary Josephine Burke (1890-1967), John Ulic Mary Burke (1891-1978), Charles Francis Mary Burke (1893-1967), Henrietta Adele Mary Burke (1894-1966), Edward Joseph Mary Burke (1895-1895), Gertrude Agnes Mary Burke (1897-1965), Alphonsus Mary Burke (1898-1898). Em maio de 1899, a esposa de Charles, Henrietta, deu ainda à luz dois gêmeos natimortos, e pouco dias depois ela faleceu, aos 35 anos de idade, deixando seis filhos órfãos. O nome Mary, que aparece em todos os filhos do Casal Charles & Henrietta, foi dado apenas no batismo e não aparece nos registros oficiais.
Após a morte de Henrietta, os seis filhos do casal, com idades entre 2 e 11 anos (John tinha 8 anos), foram colocados em internatos educacionais, em Rockaway, N.Y., e ali ficaram até 1903, quando Charles casou, em segunda núpcias, com Julia Eleanor Martin, nascida em 1865. Eles, então, voltaram a viver com o pai Charles e a madrasta Julia. O novo casal não teve filhos. (Veja mais sobre esse período em Documentos Memoráveis).
Fotos da família de Charles F. Burke. Na primeira (de 1902), aparecem: Theodora (no alto); Charles F. Burke (no centro); na esquerda John; na direita Charles; no centro, Florence, Gertrude (no joelho do pai) e Henrietta. Na segunda foto (de 1906), aparecem (do canto esquerdo superior para a direita): Theodora, Florence, John, Charles, Henrietta e Gertrude.
Depois que John Ulic Burke, se casou com Emma Anna Roggemann e o casal veio viver no Brasil, em 1919, Charles e Julia vieram várias vezes, de navio, visitar a nova família que aqui se desenvolvia. Quando Charles, no início de 1935, sentiu que estava chegando ao fim de sua vida, começou a dizer que não morreria antes do mês de maio, provavelmente lembrando-se dos seus dois filhos gêmeos natimortos e de sua primeira esposa que haviam morrido em maio de 1899. De fato, ele faleceu no dia 1o. de maio de 1935, em Nova York, aos 74 anos de idade. Coincidentemente, seu neto Charles Francis Burke, filho de John Ulic Burke, faleceu exatamente um mês depois, no Brasil, com apenas 9 anos de idade. Julia Eleonor só veio a falecer em 1964, aos 99 anos de idade.
No tronco dos Roggemann, a história registrada começa com Henneke Roggemann, nascido em 1490 na Prússia. Depois, vem uma série de Roggemann, cerca de dez gerações, durante as quais aparecem os nomes de família Limberg-Roggemann e Limberg Von Roggemann. Três irmãos Limberg Von Roggemann (Clemens, Caspar e Therese) emigraram para os EUA, N.Y., em 1856. Clemens (1829-1870) permaneceu nos EUA, usando apenas o sobrenome Roggemann. Seus dois irmãos que foram para a Austrália adotaram apenas o sobrenome Limberg, dando origem aos ramos australianos da grande família Limberg-Roggemann.
Um descendente americano de Clemens Roggemann (Limberg Von Roggemann) foi Sebastian Peter Roggemann (1862-1902), que se casou com Elizabeth Forschback (1864-1920). Desse casamento, nasceram: Peter Sebastian Roggemann (1886-1981), Margaret Roggemann (1888-1955), Emma Anna Roggemann (1895-1989) e Elizabeth Gertrude(Elsie) Roggemann (1899-1960).
Esta foto é chamada pela família Roggemann de Peter Forschback 1870 Road House. Nesta casa, nas proximidades de Nova York, nasceu, em 1864, Elizabeth Forshback (a menina em frente da janela), que 31 anos mais tarde se tornou mãe de Emma A. Roggemann. Na porta está Peter, de avental, e na outra janela a mãe de Elizabeth, Margaretha Shott. Na casa funcionava uma espécie de empório. Alguns anos mais tarde, a casa foi destruída por um incêndio, sendo erguida outra no mesmo local.
O Casal John Ulic Burke e Emma Anna Roggemann, pouco antes de seu casamento em 13/10/1919 e embarque para o Brasil, onde acabaram se radicando para o resto de suas vidas.
O casal Peter Sebastian Roggemann & Theodora Margaret Mary Burke tiveram os seguintes filhos: Peter Sebastian Roggemann (1916-1998), John Francis Roggemann (1917-1927), Paul Joseph Roggemann (1919-1995), Francis Adam Roggemann (1920-1990), Mary Constance Rose Roggemann (1922), Charles David Roggemann (1923), Theodora Marie Roggemann (1924), Gertrude Roggemann (1926), Joseph Thomas Roggemann (1927-2001) e Elizabeth Jeanne Marie Roggemann (1929-1997).
Um fato interessante foi que quatro anos antes de John e Emma se casarem, em 13/10/1919, a irmã de John, Theodora (Theo) Burke, havia se casado com Peter Sebastian Roggemann, irmão de Emma. O casal Peter Sebastian Roggemann e Theodora Margareth M. Burke (Roggemann), permaneceu nos Estados Unidos, fundando um novo ramo dos Roggemann naquele país, enquanto que o casal John Ulic Burke e Emma Roggemann (Burke) veio para o Brasil em 1919, dando origem ao ramo brasileiro da família Burke. As duas novas famílias praticamente não tiveram mais contato, exceto por uma ou outra visita e trocas esporádicas de correspondência.
Sabe-se da existência de muitos outros Burke, em várias partes do mundo, mas sobre eles não se dispões de informações que permitam avaliar até onde teriam uma origem comum. A única coisa que se pode ter certeza é que todos teriam começado na Irlanda, com os de Burgo. O mais famoso deles foi Edmund Burke (1729-1797), nascido em Dublin, que se tornou um notável político e escritor inglês, líder do pensamento conservador, e um dos maiores oradores do seu país. Já nos Estados Unidos, os mais conhecidos foram Thomas Martin Aloysius Burke, que veio a se tornar o quarto bispo de Albany, de 1894 a 1911; Kenneth Duva Burke (1897-1993), filósofo e crítico literário, e William Bourke Corcaran (1884-1957), orador e estadista. (sobre outros Burke notabilizados, ver o Apêndice).
Resumindo, o casal John Ulic Burke & Emma Anna Roggemann, que emigrou para o Brasil em 1919, teve a seguinte origem mais recente (últimos 500 anos):

Linha de ascendência de John Ulic Burke: (pelo lado paterno)
- Possivelmente um dos MacWilliam Iochtar Burke [ramo dos Burke que viviam em Sligo, Irlanda, por volta de 1500]
- Várias gerações de Burke não identificados
- Dominick Burke (1694-1764) [Irlanda. Casou com Elizabeth Comerford]
- Burke (não identificado)
- Peter Ulic Burke (1798-1868) [Offaly, Irlanda]
- Peter Nicholas Burke (1829-1905) [Mayo, Irlanda . Emigrou para os EUA em 1850. Casou com Jane Elizabeth Quin (1837-1925) ]
- Charles Francis Paul Burke (1861-1935) [Nasceu em N. York.Casou (1) com Henrietta Elizabeth Genevieve Blume (1864-1899), e (2) com Julia Eleanor Martin (1865-1964)]
- John Ulic Burke (1891-1978) [Nasceu em N.York. Casou em 1919 com Emma Anna Roggemann (1895-1989).Emigrou para o Brasil em 1919]

Linha de descendência de Emma Anna Roggemann: (pelo lado paterno)
- Henneke Roggemann (1490-?) [Prússia]
- Henneke Roggemann (1520-1600)
- Volpert Roggemann (1550-?
- Volpert Roggemann (1580-?)
- ? Roggemann (1615-1643)
- Ebert Roggemann (1640-?)
- Heinrich Roggemann (1661-1746)
- Anna Catharina Roggemann (1690-1758)
- Christian Limberg (1707-1787) [casou com Anna Eva Maria Elizabeth Roggemann (1719-1797)
- Johann Heinrich Limberg-Roggemann (1740-1810)
- Johann Heinrich Caspar Limberg-Roggemann (1771-1816)
- Johannes Josef Heinrich Limberg-Roggemann (1795-1848)
- Clemens Limberg Von Roggemann (1829-1870) [Emigrou para os EUA em 1856]
- Sebastian Peter Roggemann (1862-1902) [Casou com Elizabeth Forschback (1864-1920)]
- Emma Anna Roggemann (1895-1989) [Nasceu em N. York. Casou em 1919 com John Ulic Burke (1891-1978).Emigrou para o Brasil em 1919.
Todos os verdadeiros Burke (com ou sem esse nome) do Brasil carregam consigo, em maior ou menor grau, uma mistura de genes Burke e genes Roggemann (conforme porcentagem que consta da Relação Nominal). Do ponto de vista genético, são, portanto, todos Burke-Roggemann. Para uma rápida visão dos antepassados mais recentes, veja a Árvore Genealógica 6-A

Documentos Memoráveis

Dos primeiros anos de John Ulic Burke e Emma Anna Roggemann no Brasil, restam agora poucas relíquias: o passaporte de John, de 1916, onde consta business in Brazil, Argentina and Uruguay; o passaporte de John e Emma de 1919; um aparelho para medir granatura de papel (espessura e resistência); um cheque de US$100.00 (que nunca foi descontado); um relógio de sala; uma mesa de jantar circular; o anel de brilhante que John deu a Emma quando se casaram; uma tijelinha para doces que os pais de Emma (Sebastian Peter Roggemann e Elizabeth Forschback) ganharam quando se casaram; uma bíblia contendo anotações manuscritas sobre nascimentos, casamentos e mortes de membros da família; um baú de viagem; a certidão de casamento de John e Emma e também várias cartas e fotos antigas.
Parte do passaporte de John U. Burke, de 1916, quando ele, ainda solteiro, veio para o Rio de janeiro a serviço.
As fotos de Casal John e Emma, do passaporte de 1919.
Entre os documentos memoráveis, também foram encontradas várias cartas bem antigas, algumas das quais contém passagens muito significativas, que revelam o modo como os Burke que deram origem ao ramo brasileiro da família enxergavam a vida e os acontecimentos. A seguir, estão as algumas peças daquela correspondência. (As cartas originais foram todas escritas em inglês e as traduções foram feitas por Thomas J. Burke, procurando faze-las o mais literalmente possível). Quando Henrietta Elizabeth Genevieve Blume, a mãe de John Ulic Burke, faleceu em maio de 1899, com 35 anos de idade, em conseqüência de um aborto de dois gêmeos, ela deixou 7 filhos, 3 meninos e 4 meninas, com idades de 2 a 11 anos. John estava com 8 anos. O pai das crianças, Charles Francis Paul Burke, com 38 anos, que trabalhava no The National Park Bank of New York, não tendo como cuidar pessoalmente delas, colocou-as todas em internatos educacionais. Ali permaneceram até que em 1903 Charles se casou com Julia Eleonor Martin, com 38 anos, quando voltaram a viver juntos novamente, agora sob os cuidados da madrasta Julia. Dentre as cartas daquela época, as três seguintes, de Charles para seu filho John, são especialmente reveladoras:
(carta de 07/06/1900)

















(tradução)
The National Park Bank of New York
June 7, 1900
Meu próprio querido menino John:
Eu devo escrever e lhe agradecer por sua carta muito bonita que você me mandou. Eu estou tão orgulhoso do meu querido menino por saber que ele pode escrever e soletrar tão bem, e faz papai muito feliz receber uma bela carta que seu próprio querido menino escreveu com sua própria preciosa mão. Como é que você sabe, meu menino, que o papai valoriza aquelas suas belas linhas mais do que ele consegue dizer ao seu pequeno homem? Papai guardará a primeira carta de John junto com aqueles pequenos tesouros que ele guarda com muito cuidado, pois ele tem muitos deles, e então, algum dia, você ficará surpreso quando Papai o mostrar ao seu menino, pois eu nunca me apartarei dele, meu pequeno filho. Você será um homem então, meu menino, um grande e bom homem eu espero e rezo. Porque você sabe que não serve para nada crescer a menos que a gente cresça bem, e papai anseia ver todos os seus queridos meninos e meninas crescerem para se tornar bons e verdadeiros homens e mulheres, Agora, meu próprio menino, você pode facilmente crescer bem se você apenas se lembrar desta pequena regra: Nunca pense, nunca diga, nunca faça o que for mau. Agora, aprenda essa linha de forma que você a saiba até domingo para seu sempre amante , Papai.
(carta de 14/06/1900)
The National Park Bank of New York
June 14,1900
Meu próprio querido pequeno homem:
Papai sabe que seu querido menino tem estado a esperar por um longo tempo por uma carta dele, então ele escreverá para seu pequeno homem apenas para lhe dizer que ele ama seu menino com todo seu coração, e que ele pensa nele muitas vezes durante o dia. Você sabe, menino, eu penso que os corações dos bons pais devem ser feitos de borracha, porque não importa quantas pequenas pessoas se apertam dentro deles sempre existe lugar para todas elas, pelo menos isso é verdade com o coração do papai, pois todos os seus queridos meninos e meninas lhe são os mais preciosos.[...] Você sabe, meu menino, que você crescera bom se você for bom enquanto você for menino, e você será um menino muito bom, meu pequeno homem, se você apenas pedir ao bom Jesus, que um dia foi menino como você, para lhe ajudar. Reze a ele e a sua virgem mãe, e tenha cuidado para nunca pensar, dizer ou fazer o que é mau, e você será um bom e feliz menino e homem, e algum dia um brilhante santo com Deus e sua querida mamãe, e, eu espero, com o seu sempre amante papai..

(carta de 27/11/1900)
The National Park Bank of New York
November 27/1900
Meu próprio querido menino John:
Deus abençoe meu querido pequeno homem no dia do seu nono aniversário, pois será nessa data importante que você receberá. Sim, que o bom Deus o abençoe meu próprio querido menino e o mantenha puro, verdadeiro e honesto, para que cada aniversário sucessivo deste dia encontre meu menino fazendo a grande obra da vida para a qual todos estamos neste mundo, ou seja, fazer o certo e odiar o mal.
Este é desejo de aniversário do papai para seu menino, e este é o desejo da querida mamãe que hoje olha para baixo do céu para seu menino lembrando tão amorosamente e carinhosamente que foi a nove anos hoje que Deus lhe mandou seu primeiro pequenino filho, e, enquanto ela relembra a grande alegria daquele dia, ela ama seu menino com um profundo e suave amor, que só é dado aos puro santos de Deus que o vêm face a face. Portanto, meu menino, você procurará pensar nela com freqüência neste seu aniversário. Lembre-se o quanto ela verdadeiramente o ama e que ela vela por ti e reza por você sempre com um amor maior até mesmo do seu próprio sempre amante papai.
Vinte dois anos depois dessas ternas cartas terem sido escritas, John tinha crescido e se tornara o homem forte, bom e correto com o que tanto sonhara seu sempre amante pai. Estava casado com Emma Anna Roggeman, vivia no Brasil, em Santo Amaro, e já tinha duas filhas, Mary e Margaret. Havia seguido e continuaria a seguir durante o resto de sua vida aquela regra de ouro que havia aprendido quando pequeno do seu pai: Nunca pense, nunca diga, nunca faça o que for mau.

Notas Complementares

A Irlanda


Sabe-se que a ilha da Irlanda (Eire) foi habitada por caçadores e pescadores desde 6000 a.C. Quando os celtas (povo de origem indo-européia) passaram a ocupá-la, por volta 2000 a.C., o território já era dominado por mais de cem pequenos reinos independentes, lutando entre si, destacando-se os de Ulster e de Connaught. Em 795 os noruegueses (vikings) invadiram a região e a dominaram pelos próximos 200 anos, dando-lhe o nome de Eire. Em 1175 o Eire passou para o domínio da Bretanha (nome da Inglaterra, que estava sob o domínio dos celtas e dos bretões do noroeste da Europa). A população da região sempre foi predominantemente católica, até que por volta de 1547 foi introduzido oficialmente o protestantismo, com o que se revoltou a maioria católica, que conseguiu restaurar o catolicismo como religião oficial em 1553. Mas novas lutas entre católicos e protestantes voltaram a acontecer entre 1559 e 1652, especialmente nos condados do norte, onde se concentrava a população protestante. Em 1801 o Eire passou a fazer parte do reino da Grã-Bretanha e Irlanda.
Em 1921 a Irlanda tornou-se oficialmente estado livre, mas sob domínio do soberano inglês. A independência somente ocorreu de fato em 1937, quando o nome Eire se tornou oficial, mas os seis condados da Irlanda do Norte, predominantemente protestante, permaneceriam sob o domínio inglês, até o dia em que eles decidissem se queriam fazer parte do Eire. Em 1985 foi assinado um acordo pelo qual a Irlanda do Norte ficava unida à Grã-Bretanha, mas protestantes e católicos nunca conseguiram chegar a um acordo sobre essa questão e continuam até hoje a brigar entre si e com os ingleses, inclusive com exércitos clandestinos de libertação praticando atos de terrorismo.
Entre os anos de 1845 e 1849 a região foi assolada pela grande fome e uma epidemia de tifo, fazendo com que enormes levas de irlandeses emigrassem para os EUA. Mas as emigrações continuaram bastante intensas ainda até por volta de 1900. Foi nessa ocasião que chegaram aos Estado Unidos os primeiros Burke, com esse nome, e muitos outros descendentes dos de Burgo e Burke, muitos com nomes de família trocados. (ver abaixo Origem do nome Burke e também o Apêndice)
John Ulic Burke (1891- 1978), o fundador do ramo brasileiro dos Burke, dizia que seu avô e seu bisavô, Peter Nicholas Burke (1829-1905) e Peter Ulic Burke (1798-1868), respectivamente, tinham vivido em Sligo, no Oeste da Irlanda, porém, nos registros oficiais consta que ambos nasceram em Swinford, Condado de Mayo. Provavelmente isso se deva ao fato de que o condado e a pequenina cidade de Sligo ficam muito próximos da cidade de Swinford, que é bem maior, e onde suas mães teriam ido para darem à luz seus filhos (ver mapa no Apêndice). De qualquer forma, essa região da Irlanda foi o berço dos de Burgo irlandeses, que deram origem aos Burke e a várias outras famílias que simplesmente mudaram seus nomes por causa dos desentendimentos e lutas entre eles. (Para mais detalhes sobre a história da Irlanda e dos Burke, veja o Apêndice).


A Normandia e os Normandos (origem européia continental dos Burke)

A Normandia é uma região ao noroeste da França, à margem do Canal da Mancha, entre a baía do Sena e o golfo de Saint Malo. Foi ali que se deu a invasão da Europa pelas forças aliadas em 1944, no famoso Dia D, da II Grande Guerra. A Normandia foi habitada desde o período paleolítico, e foi conquistada por vikings e normandos. Com o passar dos anos, foram se formando pequenos principados e reinados, como em toda a Europa. Daquela região saiu Guilherme I o Conquistador, que em 1066 conquistou a Inglaterra. Dali, cem anos mais tarde, saíram os de Burgo, que deram origem aos Burke da Irlanda. A linhagem dos de Burgo foi reconstituída diretamente até o Conde Burgo, Carlos Magno, Pepino o Pequeno, Charles Martel (o Martelo), Clóvis o Grande, e até quase 100 anos antes de Cristo, com Cassander de Sicambri, que combateu o imperador romano César. É bem possível que daí tenha se originado a lenda de que os Burke brasileiros têm sangue azul.

Origem do Nome Burke


Em maio de 1170, um membro da família de Burgo emigrou da Normandia para a Irlanda. Chamava-se William de Burgh (ou talvez Fitz Adelm de Burgo) e recebeu de Henry II, rei da Inglaterra, uma grande extensão de terras em Connacht, na Irlanda (na região onde hoje ficam os condados de Galway, Mayo, Sligo e Roscommon). Cinqüenta anos mais tarde, o filho dele, Richard de Burgo, construiu um castelo ali, como parte de sua campanha para tomar posse das terras que haviam sido doadas ao seu pai. Com o passar dos anos os de Burgo foram se espalhando por toda a Irlanda e Inglaterra, e o nome de Burgo foi se modificando (anglicisando), passando por de Burgh, Burke e também Bourke, mas finalmente se generalizou como Burgh e Burke. É quase certo que de Burgo (de Burgh) significasse do burgo, da cidade.
Em pouco tempo, os vários sub-ramos dos de Burgo (Burke) foram se separando e brigando entre si, inclusive assumindo outros nomes como MacDavie, MacHugo, MacRedmond, MacGibbon e MacSeóinín. (Mac significando o filho de). A principal separação entre os Burke foram dos MacWilliam Uachtar Burke, de Galaway, e MacWilliam Iochtar Burke, de Mayo. Essas contendas acabaram fragmentando a grande família em três clans: os ClanRickarde Burke, em Galway; os MacWilliam Iochtar Burke, em Mayo, e os ClanWilliam Burke, no Sul de Tipperary . (Para mais detalhes, ver o Apêndice).

Origem do Nome Ulic


Tornou-se prática na família de Burgo, e depois entre os Burke, darem ao filho mais velho de cada casal o nome de Guillaume (William, Guilherme), uma homenagem a Guilherme I - O Conquistador, nascido na Normandia em 1028, que havia invadido e conquistado a Inglaterra em 1066 e a governou até sua morte em 1087. Com o passar dos tempos, Guillaume (William) foi sofrendo uma contração gaélica (gaélico = língua falada na Irlanda) e se tornou Ulick, e depois Ulic. Esse costume foi mantido por Peter Ulic Burke (1798-1868), quando, em 1837, na Irlanda, deu ao seu filho mais velho o nome de John Ulic Burke (do qual nada mais se sabe). O mesmo aconteceu nos EUA, em 1891, quando Charles Francis Paul Burke (1861-1935) deu ao seu filho mais velho o nome de John Ulic Burke (1891-1978) (que veio a emigrar para o Brasil em 1919). O fato se repetiu no Brasil, em 1923, quando John Ulic Burke deu ao seu filho mais velho o seu mesmo nome, e novamente quando este também deu ao seu filho mais velho o nome de John Ulic Burke (1946). Possivelmente este seja o último Burke no Brasil a carregar em seu nome o Ulic, já que ele não o colocou em Thiago Nogueira Burke (1975), seu filho mais velho. Parece que nos Estados Unidos não existe mais ninguém com Ulic em seu nome. Talvez na Irlanda ou na Inglaterra ainda existam alguns, mas sobre eles nada se sabe. O mais provável é que por lá o Ulic tenha sido substituído novamente pela sua forma inglesa William(s).

A Prússia (região de origem dos Roggemann)


A Prússia se originou numa região situada às margens do mar Báltico, habitada no século III por uma população de origem eslava. O território ocupado foi crescendo e no século XIII tornou-se um ducado. Foi ali que no século XV aparece o primeiro registro de um Roggemann (Henneke). No século XVIII se tornou o reino de Hohenzollem. Em 1918 foi transformado no estado alemão da Prússia, da República de Weinmar. Depois da II Grande Guerra, terminada em 1945, parte do seu território foi anexado pela União Soviética e parte pela Polônia. Com a reorganização política da Alemanha, em 1947, a Prússia foi oficialmente extinta.

Origem do nome Roggemann


Sobre
o nome de família Roggemann não se tem certeza, contudo sabe-se que Roggen em alemão é centeio e man é homem. Assim, o mais provável é que os primeiros Roggemann (ou Roggeman, com um n) teriam sido agricultores que produziam centeio. É uma longa tradição em línguas de origem anglo-germânicas formar palavras e nomes próprios pela junção de duas ou mais palavras, por exemplo, fisherman (pescador), junção de fish (peixe) e man; o sobrenome Zimerman, uma fusão de Zimer (quarto) com man, o Camareiro. Assim, é bem possível que o nome Roggemann tenha surgido a partir da fusão de roggen e man, ou seja O homem que cultiva centeio. Essa suposição se reforça pelo fato de que Henneke Roggemann (1536-?) era dono de uma fazenda em Niederreiste Sauerlands, em Westfalen (Westphalia). Descendentes diretos dele ainda são donos daquela propriedade agrícola. Chamam-se, agora, Limberg e moram em Meschele, perto de Reiste. O nome Reiste aparece em documentos pela primeira vez em 1231. O nome NiederReiste significa Baixo Reiste (fica numa parte menos elevada que Reiste), a 100 km a Leste de Düsseldorf.
Outra possibilidade, mas menos provável, seria a de que o nome Roggemann teria se originado de Rogue, significando uma pessoa sem princípios, um malandro, ou alguém que está sempre fazendo alguma artimanha. Roggeman, então, seria o malandro, o desordeiro, ou coisa do tipo. Ainda outra possibilidade (que consta em dicionários), seria a de que rogue viria do Latim rogare, rogar, pedir. Assim, Roggeman seria O homem que roga, O Pedinte. De qualquer forma, o primeiro Roggeman deve ter sido um agricultor que cultivava centeio ou, na pior das hipóteses, um desordeiro, ou um pedinte, ou tudo isso ao mesmo tempo...
O emprego indiferente de um ou dois n no sufixo man era prática comum na Prússia, mas em épocas mais recentes se tornou costume distinguir um alemão (mann, com dois n) de um judeu (man, com apenas um n). Por isso, sabe-se que os Roggemann não são de origem judia, mas sim prussiana.


2 – OS PRIMEIROS TEMPOS NO BRASIL (1916-1928)

Início Esperançoso, Complicado e Difícil

John Ulic Burke, recém formado em contabilidade, com 25 anos de idade, ainda solteiro, veio ao Rio de Janeiro em 1916, para trabalhar numa firma americana de importação-exportação (principalmente papel, fios elétricos e arames), na qual investia sistematicamente todos os seus dólares. Como os negócios iam bem, John voltou aos Estados Unidos para se casar com Emma Anna Roggemann. Casaram no dia 13-10-1919, retornando ao Brasil e indo morar numa grande casa comprada na Rua São Benedito, no sub-distrito de Santo Amaro, em São Paulo. Ali nasceram as filhas Mary (1920) e Margareth (1921).
Três anos depois de chegarem ao Brasil, no dia 5 de novembro de 1922, Emma escreveu uma carta à sua amiga de juventude, Frances Hennesy, contando um pouco sobre o que era viver neste país. Eis a segunda página daquela carta:

Tradução:
Estamos na primavera e entrando no verão. Não consigo imaginar vocês entrando no inverno. Não tivemos frio nenhum este ano, nem mesmo uma única geada forte, de forma que as verduras continuaram a crescer, as flores florescem o ano todo, haja ou não geada. Agora mesmo Lírios da Páscoa e enormes margaridas [provavelmente adálias] estão florindo por todos os lados. Os lírios crescem 3 a 4 pés de altura e têm entre 6 a 12 ou 13 flores em cada ramo. As margaridas têm entre 4 e 5 polegadas de diâmetro. É quase impossível acreditar no enorme tamanho das coisas. Um jovem cogumelo fresco enche um prato de sopa, servindo 4 ou 5 pessoas. Este é certamente um lindo lugar para se viver.
Bem – bye-bye, não morra congelada este inverno. Pense em nós assando [morrendo de calor] no Natal e indo à Missa da Meia-Noite. Jack [era assim que Emma chamava John] manda lembranças. As crianças mandam grandes beijos.
Sinceramente
Emma R. Burke

Como relata Henrietta hoje, a família "possuia um carrão (importado – creio que inglês), chofer e empregada ¾ Maravilha!, se esse sonho fosse adiante ¾ a firma faliu, deixando o casal a ver navios ¾ perderam tudo!".
John, então, partiu para outra aventura: instalar uma granja de galinhas, em Santo Amaro, em sociedade com um amigo. Esse "amigo", de repente, vendeu tudo e sumiu com o dinheiro, deixando John cheio de dívidas para pagar. Como comenta Henrietta, "sumiu, não para sempre, pois mais ou menos uma década depois apareceu em Água Fria pedindo um prato de comida. Ganhou o alimento pedido bem como foi solenemente escorraçado por Dona Emma". John precisou vender tudo o que possuía para poder pagar as dívidas. Resolveu, então, buscar um emprego.

O Primeiro Emprego

Em 1923, John conseguiu uma colocação na Light and Power Company, para cuidar da importação através do porto de Santos do material e equipamento a ser usado na construção da usina hidroelétrica de Cubatão (hoje Usina Henry Borden)*.
A usina de Cubatão era parte do complexo represa-usina planejado pelo engenheiro norte-americano Billings. Ficava no sopé da Serra do Mar, cerca de 700 metros abaixo do nível da represa (que hoje tem o seu nome), de onde a água que movimentava as turbinas geradoras descia através de grandes dutos metálicos. Ela entrou em funcionamento em 1926, com uma capacidade instalada de 35 MW, reforçando os 16 MW fornecidos pela hidroelétrica instalada no rio Tiete em Santana do Parnaíba (hoje, usina Edgar de Souza). Com o passar dos anos a usina de Cubatão sofreu sucessivas ampliações,inclusive com a construção de um grande túnel dentro da rocha, chegando a produzir 887 MW, energia suficiente para abastecer uma cidade de dois milhões de habitantes.
Nesta foto de 1924, vê-se a usina em plena construção. Na parte inferior aparecem os grandes tubos de ferro usados para trazer a água desde o alto da serra até as turbinas. Esse era parte do material empregado na construção importado através do porto de Santos, onde John trabalhava. Do lado direito da tubulação colocada na encosta da Serra do Mar, aparece a picada aberta na mata atlântica por onde passaria a linha de transmissão de energia elétrica para a cidade de São Paulo.
Vista da construção do primeiro duto da usina (esquerda). Subia até o ponto de captação na barragem erguida o alto da serra, formando a represa Billings (foto da direita). A linha férrea ao lado do duto foi construída exclusivamente para transporte do material e dos operários. Esse sistema era e ainda é operado por troles rebocados por cabos devido à alta declividade.
Em 1923, nasceu John Ulic, o primeiro filho homem do casal, quando a família foi morar no Guarujá. Em 1924 nasceu Henrietta. (em Santo Amaro). Os Burke ficaram no Guarujá até 1925, voltando, então, para Santo Amaro.
Ao lado, vista do Guarujá (praia de Pitangueiras) no início da década de 1920, época em que os Burke viveram lá e John trabalhava para a Cia. Light na construção da usina hidroelétrica de Cubatão.
Em 1924, a irmã de Emma, Margaret Roggemann, ainda solteira, veio dos EUA visitar os Burke no Guarujá. No retorno para casa conheceu, no navio, Charles Doherty, que voltava do Chile para os EUA, com quem veio a se casar no ano seguinte. O novo casal foi viver no Chile, na região do deserto de Atacama. Charles trabalhava para a Cia Dupont, que extraia minérios naquela região.
Terminado o trabalho em Santos, John continuou trabalhando para a Light no escritório central em São Paulo, mas, no início de 1926, ele, intempestivamente, pediu demissão, por não concordar com o superfaturamento que um filho de um diretor estava praticando. Viu-se, então, com uma família de cinco filhos, novamente sem nada.

O Segundo Emprego

Ainda no início de 1926, John conseguiu um novo emprego, desta vez na "The Brazilian Portland Cement Company", criada em 1925 pela empresa canadense Drysdale & Pease, de Montreal, que estava instalando a primeira fábrica de cimento no Brasil. A nova empresa foi criada em sociedade com alguns empresários brasileiros que já exploravam jazidas de calcáreo para produção de cal na região de Gato Preto, e que operavam desde 1914 uma pequena linha férrea ¾ a Estrada de Ferro Perus-Pirapora. John trabalhou na fase final da construção da fábrica em Perus e abertura das jazidas de calcário na região de Água Fria, hoje município de Cajamar. Em abril-maio de 1926, a fábrica de cimento começou a funcionar, vendendo 96% da produção para a Light and Power Co. (Mais detalhes sobre a fábrica de cimento e a ferrovia nos apêndices "C", no final do livro).
Durante esse período, John passou a viver numa pensão (a "Casa Grande"), em Perus ("no mato", como dizia Emma), e a família continuou morando em Santo Amaro. A cada duas semanas, John fazia uma visita à família. Em 1928, os Burke mudaram-se para Água Fria, onde Mr. Burke assumiu o posto de superintendente das pedreiras da Companhia Perus, posição que veio a ocupar durante os próximos 23 anos.
Vista recente da usina hidroelétrica em Cubatão, que John Ulic Burke ajudou a construir no início da década de 1920, agora chamada Usina Henry Borden.
Vista da Fábrica de Cimento em Perus, na qual John Ulic Burke começou a trabalhar em 1926, ano em que ela entrou em funcionamento. Esta foto é de 1928, ano em que a família Burke mudou-se para Água Fria, onde Mr. Burke, como John passou a ser conhecido, foi superintender as operações de abertura e funcionamento das pedreiras.
A abertura de uma nova pedreira de calcáreo exigia a construção de vários ramais ferroviários, que precisavam ser mudados de posição freqüentemente. Nesta foto vemos três linhas paralelas, algumas vagonetas (rente à face da rocha) e uma das muitas pequenas locomotivas usadas para movimentar vagonetas e vagões nas pedreiras. Este é um cenário típico de uma das operações permanentes que Mr. Burke veio a superintender durante todo o tempo em que trabalhou para a Cia. de Cimento Perus (veja no próximo capítulo, muito mais sobre abertura e funcionamento das pedreiras).


3 – A VIDA DE DESBRAVADORES (1928-1938)

Iniciando Uma Nova Vida

A mudança dos Burke de Santo Amaro para Água fria foi, como relata Henrietta, que participou dela, uma verdadeira aventura, "feita com 5 crianças, 2 cachorros (Pinga e Cerveja), 1 gato (Ginger) e 1 empregada (Helena). A casa era apenas o ‘esqueleto’ do que seria feito aos poucos. Janelas? Sim (apenas os batentes). Portas? Idem. Os cachorros entravam e saiam à vontade, lambendo a cara de quem dormia".
Durante os anos em que os Burke viveram sua primeira, difícil e complicada vida no Brasil, Charles F. Burke e Julia, o pai e a madrasta de John, vieram duas vezes ao Brasil para visitá-los. A segunda visita foi em 1929, ano em que John e Emma comemoravam o seu décimo aniversário de casamento. Trouxeram consigo um grande pedaço do bolo servido no casamento ("plumpudding", uma espécie de bolo de frutas secas), que havia sido guardado durante todos aqueles anos dentro de uma lata lacrada hermeticamente. Todos, encantados, festejaram a data comendo aquela preciosa relíquia... (parece que naqueles tempos ninguém se preocupava muito com a "data de validade" de um produto...).
No dia 3 de maio de 1931, cinco anos após ter começado a trabalhar na Cia. de Cimento Perus, John e Emma, agora com 6 filhos (Mary, Margaret, John, Henrietta, Charles e Thomas), escreveu uma carta para sua madrasta, Julia, que chamava de mãe. Nela, John dava notícias sobre a família e tecia alguns comentários sobre os acontecimentos dos últimos anos da "grande depressão" (crise econômica), que abalara o mundo econômico e social. Eis um pouco do que ele disse naquela carta, na qual comentava o que tinha acontecido à Companhia de Cimento Perus durante aquele período.
(traduzida do inglês).
[...] Nosso negócio, pelo menos, está indo a toda velocidade, e todos os recordes de produção foram batidos. Uns poucos meses atrás tudo estava no buraco, mas nós conseguimos nos arranjar de alguma maneira. O panorama geral é um tanto obscuro, mas isso não é nada particularmente surpreendente quando se olha ao redor do resto do mundo. Eu tenho uma grande fé no futuro deste país, mas parece como se as pessoas estão esperando o milênio aparecer por algum passe de mágica ao em vez de pegar uma picareta e uma pá e virar a terra para plantar alguma coisa.
Nós estivemos bastante incomodados por algum tempo por uns pretensos comunistas, mas essa bobagem foi prontamente debelada, e por enquanto o governo tem sido capaz de lidar com esse aspecto em bom estilo. O Brasil encontrará sua saída das suas atuais dificuldades, mas não será da noite para o dia, paciência e visão clara serão necessárias para recolocar o barco no prumo. Em todo caso, este país parece estar basicamente em melhor condição que a maioria dos outros, de forma que nós todos vivemos em esperança. Quando a maré econômica virar, como certamente o fará, nós todos olhamos para um período de desenvolvimento por muito tempo, e numa escala que se rivalizará com os "hey-days" dos U.S.A., sem, esperamos, a insensatez de não olhar para onde estamos indo. Os brasileiros têm em sua verdadeira natureza criar um país que talvez sirva bem como modelo para futuras gerações, e Deus permita que eles aproveitem integralmente a gloriosa oportunidade.
[...] Lamento que o mercado de ações pareça tão podre, mas sempre as coisas parecem mais negras – etc. Eu não prego o socialismo, mas eu não hesito em dizer, para constar em registro, que a menos que seus líderes industriais acordem para os fatos batendo-lhes na cara e adotem uma política mais sensata em relação aos trabalhadores, vocês terão problemas ainda muito mais graves nas mãos do que aqueles que tiveram que enfrentar até agora – que, em comparação com a presente aflição econômica parecerão um agradável piquenique.
Muito amor para você e papai (e para toda a gang) de nós todos.
Seu menino John

Abrindo Pedreiras, Construindo Vilas e Ferrovias

Quando os Burke se mudaram para Água Fria (hoje Cajamar) em 1928, ela era um lugarejo pertencente ao município de Santana do Parnaíba
*. Era pouco mais do que um grande pátio ferroviário e uma pequena vila operária, que estavam sendo construídos para a mineração de pedra calcária, usada para a produção de cimento na fábrica em Perus. Ficava num vale, em região montanhosa, na Serra dos Cristais, coberta por floresta nativa. No fundo do vale, serpenteava o córrego Água Fria (afluente do Juqueri Mirim, afluente do Juqueri Guaçu, afluente do Tietê). A região toda era ainda praticamente intocada, coberta de florestas nativas e habitada por uma grande variedade de animais silvestres.
Água Fria distava cerca de 3 km do antigo vilarejo de Lavrinhas (diminutivo de lavras), que consistia de um armazém de secos e molhados, e um punhado de pequenas casas, ao longo de uma estradinha de terra. Ali, antigamente, houve garimpo de ouro, o que podia ser comprovado pelos enormes montes de seixos, areia e cristais de quartzo cobertos de vegetação encontrados ao longo do córrego. Lavrinhas, muitos anos mais tarde, veio a se tornar sede do município de Cajamar (1959), que se tornou bastante conhecido no Brasil todo por causa de afundamentos de partes da cidade, engolindo casas e ruas, causados pelo colapso de grutas calcárias existentes no seu subsolo, e amplamente noticiados pela imprensa e mostrados na TV.
Água Fria distava 20 quilômetros da fábrica de cimento em Perus, ao qual era ligada por uma ferrovia, de linha única e bitola estreita (60 cm entre trilhos). A "Perus-Pirapora" fora projetada oficialmente como um ramal ferroviário para ligar a SPR (São Paulo Railway, hoje "Santos-Jundiai") à cidade de Pirapora, mas de fato destinava-se ao transporte de cal, produzido no bairro de Gato Preto pela família Beneducci, Sylvio de Campos e alguns outros empresários, e ao transporte de pedra calcárea para a fábrica de cimento em Perus.
Ao longo da ferrovia não havia qualquer moradia ou outra edificação, somente uma linha telefônica, instalada pela Companhia. A cada dois ou três quilômetros, havia um pequeno trecho de linha dupla, permitindo que os trens que iam das pedreiras pudessem cruzar com os que voltavam vazios da fábrica. Em cada cruzamento havia uma pequena "cabine" telefônica "de bloqueio" (aberta, de concreto, telefone com baterias e acionado a manivela). Eram locais de parada obrigatória. O maquinista descia da locomotiva e ligava para a cabine central de controle do tráfego, comunicando sua chegada e aguardando a ordem para prosseguir até o próximo cruzamento ou para aguardar a chegada do trem vindo em sentido contrário. O processo todo era lento, fazendo com que o percurso de apenas 20 km geralmente levasse mais de uma hora para ser percorrido.
* Cajamar teve origem no antigo Distrito de Santana do Parnaíba denominado Água Fria. Em 1944, através do Decreto Lei No. 14.344 de 30 de novembro, passou a chamar-se CAJAMAR. Sua elevação municipal deu-se pela Lei No. 5.285 de 18 de fevereiro de 1959, sendo instalada oficialmente em 1º. de janeiro de 1960. Com um território de 134 km2, limita-se com os municípios de Jundiaí, Franco da Rocha, Caieiras, São Paulo, Santana do Parnaíba e Pirapora do Bom Jesus.
Pela estrada de ferro trafegavam as composições que transportavam as pedras de Água Fria até a fábrica em Perus. Eram formadas por vagões de aço puxados por uma locomotiva a vapor, que queimava óleo combustível. O último vagão era de madeira e destinava-se ao transporte de passageiros. Duas vezes por dia, também trafegava uma composição especial formada por um só vagão de passageiros e a locomotiva. Oficialmente, eram as composições "M-2" e M-3" da E.F.P.P, simplesmente chamadas de "o eme".
Algumas das locomotivas mais modernas e vagões de passageiros foram comprados da antiga fazenda de café da família de Santos Dumont, que possuía uma ferrovia própria.
Em cima (à direita), uma das primitivas pequenas locomotivas usadas pela Cia. Perus para movimentar as vagonetas nas pedreiras. Acima, uma das locomotivas compradas da Fazenda da família Dumont, acoplada ao vagão de passageiros, formando a composição chamada de "O Eme".
(Fotos tiradas em julho de 1949, onde aparecem Tommy, Eddy e membros da família Veras)
A retirada das rochas das pedreiras só podia ser feita por linhas férreas, que precisavam ser construídas através de uma região muito montanhosa. Isso obrigava a abertura de muitos cortes nas encostas e a construção de aterros e pontes. Todo esse trabalho era feito apenas
com o emprego de picaretas, enxadões e pás, e toda a terra era movimentada por carroças puxadas por burros.
A foto mostra o "corte grande" sendo construído para a construção da linha férrea entre Água Fria e a pedreira "Pires".
A única outra via de acesso à Água Fria, além da ferrovia, era uma estrada de terra muito precária, que ia até Santana do Parnaíba e Pirapora do Bom Jesus. Somente por volta de 1950, quando a Via Anhangüera foi construída, passando por Gato Preto (pouco antes do que é hoje o distrito de Jordanésia), foi aberta uma nova estrada ligando-a a Água Fria (que passara a se chamar oficialmente de Cajamar a partir de 1944).
(Para mais informações sobre Água Fria (Cajamar), a Fábrica de Cimento Perus e a Estrada de Ferro Perus-Pirapora, ver os Apêndices C)

As Pedreiras

Tudo em Água Fria girava em torno das pedreiras de calcário ( enormes jazidas de rochas sedimentares metamórficas (carbonatos de cálcio e magnésio) formados durante milhões de anos pelo depósito de conchas e carapaças de animais marinhos no fundo de mares primitivos, e erguidos pelos movimentos da crosta terrestre. As pedreiras eram identificadas de acordo com a ordem em que eram descobertas. Quando os Burke chegaram à Água Fria, a pedreira "um" já estava chegando ao seu fim, e a pedreira "três" entrando em exploração. Alguns anos depois, a "dois" foi aberta, e em pouco tempo se tornou um imenso paredão de rocha, com cerca de quinhentos metros de frente por cem de altura. Dentro de um raio de uns 5 km em torno de Água Fria, tinham sido descobertas várias outras grandes jazidas de rocha calcária, que mais tarde viriam a ser abertas como novas pedreiras: "Gato Preto", "Rosário", "Bocaina", e "Pires".
Vista aérea de Água Fria por volta de 1934. Bem no centro da foto está o pátio ferroviário. Logo acima, vê-se o caminho que leva à casa dos Burke, e um pouco adiante (acima) está a pedreira "Três". A pedreira "Dois", (à esquerda do pátio), estava apenas começando a ser aberta. Depois de passar pelo pátio, a linha férrea se bifurca, um ramo seguindo rumo à pedreira "Um", à esquerda (que não aparece), e o outro rumo à pedreira "Pires", passando entre a vila operária e o campo de futebol (parte de baixo da foto). Pouco acima do ramo da esquerda está outra vila operária e abaixo dele o entreposto da Cia. Perus.
Nesta foto de 1935 aparecem as pedreiras "dois", já em plena produção (à esquerda), e a "três" (à direita). A estrada de ferro vinda de Perus surge no canto inferior direito e segue até o pátio de manobras. As duas manchas claras abaixo da linha férrea são os lagos de barro resultantes do desmonte por lavagem dos morros das pedreiras. Algum tempo depois, estes dois lagos acabaram tomando toda a área situada entre a linha e o riacho Água Fria, ao pé do "Morro Grande" (de onde a foto foi tirada). Gato Preto (por onde muitos anos mais tarde passaria a Via Anhanguera) fica no vale entre o moro das duas pedreiras e o Moro do Rosário (outra pedreira), o mais alto que aparece no horizonte. A chácara com a casa dos Burke aparece bem no centro da foto.
Uma nova pedreira começava pelo desmatamento do morro e pela remoção de toda a camada de terra que cobria a rocha. A terra era retirada com o emprego de um "canhão" d’água, abastecido por um grosso cano, mantido sob forte pressão por bombas possantes, que tiravam a água do córrego Água Fria. No caso da pedreira "três", o lodo produzido pela lavagem causou a formação de um enorme "lago" de barro mole, perto da saída do vale, que, aos poucos, acabou sendo totalmente coberto por taboa.
Depois de limpa por cima, a pedreira ia sendo cortada, de alto a baixo, por meio de enormes explosões de dinamite, colocada em profundas perfurações, feitas com martelos pneumáticos (de ar comprimido). Antes de cada explosão, uma seqüência de fortes apitos (a vapor), audíveis por toda Água Fria, avisava que, dentro de alguns minutos, "iam dar fogo", para que todos procurassem imediatamente um abrigo seguro, já que as explosões arremessavam pedras a centenas de metros de distância, chegando até a atingir algumas das casas. Após cada "dinamitada", os trabalhadores voltavam para encher manualmente os vagões com as pedras. As demasiado pesadas para serem erguidas e jogadas dentro dos vagões eram quebradas a golpes de pesadas marretas; os blocos maiores eram deixados para serem posteriormente quebradas com pequenas cargas de dinamite. Cada vagão era carregado por um só homem, identificado pelo seu número, escrito em giz na lateral do vagão. O pagamento dos carregadores era feito semanalmente, conforme a produção de cada um (peso total de pedra carregado na semana), o que era controlado por uma balança ferroviária, colocada ao lado do escritório da Cia Perus.
Carregar vagões com pedra era um trabalho pesado, bruto, extenuante e sem limite de horas. Somente cerca de vinte anos mais tarde é que foram introduzidas grandes máquinas carregadeiras, para substituir o trabalho braçal (foto).
À medida que a frente da pedreira avançava, os ramais provisórios da ferrovia iam sendo estendidos, permitindo que os vagões pudessem chegar até às pedras dinamitadas. Havia uma "turma da linha" para cuidar exclusivamente dessa tarefa.
Durante muitos anos, as pedras brutas (de tamanhos muito variados) eram transportadas diretamente de Água Fria até a fábrica em Perus. Ali, antes de serem reduzidas a pó fino nos moinhos, passavam por um primeiro britador, que apenas as quebravam em pedaços um pouco menores. A seguir, as pedras seguiam por uma esteira rolante, ao longo da qual eram observadas por operários encarregados de descartar todas as pedras ricas em magnésio, impróprias para produção de cimento, o que era perceptível pela sua coloração mais "esverdeada" em comparação com a cor mais "cinza, azulada e esbranquiçada" do carbonato de cálcio. Muitos anos mais tarde, essa britagem prévia e seleção passou a ser feita num grande britador construído em Água Fria, perto da entrada da pedreira "dois" e ao lado do pátio de manobras, evitando com isso transportar muito rejeito até Perus.
As pedras, dentro dos vagões e antes de seguirem para a fábrica de cimento, eram lavadas com fortes jatos d'água. O controle visual de qualidade das pedras era sempre acompanhado por coletas de amostras, para serem examinadas no laboratório da Cia. Uma preocupação permanente de Mr. Burke (quase uma obsessão) era com os teores de magnésia (carbonato de magnésio) das rochas que estavam sendo mineradas. Isso porque, para a produção de cimento de boa qualidade o minério não pode ter um teor de magnésio superior a um certo limite. Várias vezes por dia, Mr. Burke passava pelo laboratório para verificar os resultados das últimas análises, e, depois de voltar para casa no fim da tarde recebia pelo telefone os resultados do último boletim do dia (veja mais sobre o telefone em "Curiosidades e Historinhas").

A Vila de Água Fria

Na vila de Água Fria, além das casas dos trabalhadores, havia o entreposto da Cia Perus. Era o único estabelecimento onde se podia comprar gêneros de primeira necessidade, produtos de limpeza, carne e alguns poucos artigos de vestimenta. As compras eram feitas a dinheiro (raramente), com vales e "na caderneta", descontadas nas folhas de pagamento dos empregados. Para qualquer outra coisa, o jeito era ir até Perus ou mesmo São Paulo. Uma vez por mês, os Burke e algumas outras famílias de funcionários mais graduados eram visitados por um mascate da Casa Lima (de São Paulo, Ladeira Porto Geral), o "Zé Turquinho", que chegava de trem e andava carregando uma enorme mala e um imenso volume embrulhado em papel Kraft cheios de roupas e amostras de tecidos. A família comprava alguma das suas mercadorias e encomendava outras, para serem trazidas na próxima visita. Uma vez por mês, Mr. Burke e D. Emma iam a São Paulo para fazerem compras no Empório Sírio ("pertinho da Praça da Sé, quase na Rua Direita", como diziam). Ali compravam quase tudo que a família consumia em matéria de "secos e molhados". O Empório se encarregava de embalar as mercadorias em caixas de madeira e despachá-las para Água Fria.
As casas dos trabalhadores da Cia. Perus eram construídas com tijolos de cimento, cobertas com telhas e razoavelmente confortáveis.
Toda Água Fria era servida de energia elétrica e água encanada tratada, produzidas pela Cia. Os fogões das casas queimavam lenha, coletada pelas mulheres e crianças, que percorriam muitos quilômetros nas matas da redondeza para "lenhar" ou "lenhando", como se dizia naqueles tempos. A família do Mr. Burke gozava do privilégio de ser abastecida regularmente com lenha cortada em pequenos pedaços pela serraria da Cia. A serraria funcionava também como marcenaria, fazendo mobílias, e até caixão de defunto.
Na vila havia uma pequena "farmácia", atendida por um farmacêutico ("Seu Nezinho"), que também "quebrava o galho" como médico. O médico da Companhia, Dr. J. B. Rodrigues Pacheco, vinha de São Paulo todas as quartas e sábados, para atender consultas (sempre visitava os Burke). Não havia dentista diplomado, e os Burke iam a São Paulo ("no Dr. DeLuca") sempre que precisavam de tratamento dentário. A população local era atendida (debaixo da caixa d’água que abastecia as caldeiras das locomotivas) por um dentista prático, que "esterilizava" seus instrumentos ao Sol, colocando-os sobre uma toalha no parapeito da janela...
Uma vez por mês, um padre vinha de Santana de Parnaíba, para celebrar missa e fazer batizados e casamentos numa igrejinha (de São Sebastião) ao lado do caminho de Água Fria para Lavrinhas. A Igreja foi construída em 1931 com recursos doados por Charles e Julia, avós dos Burke brasileiros. Os paramentos, toalhas, cálice etc., foram contribuição de Frances Hennessy e Anna Colighan, duas grande amigas de infância e juventude de D. Emma.
John e Emma eram católicos fervorosos. Rezavam antes das refeições e de dormir, participavam de todas as atividades religiosas da vila (missas, procissões, quermesses) e davam "aulas de catecismo" aos filhos. Os padres de Santana do Parnaíba visitantes hospedavam-se com os Burke. Também os padres redentoristas missionários norte-americanos, que vinham ao Brasil catequizar índios no oeste do Paraná e em Mato Grosso, costumavam passar alguns dias com os Burke em Água Fria, antes de prosseguirem viagem. Alguns deles se tornaram grandes amigos da família pelo resto da vida.

A Comprida Casa dos Burke

A casa destinada ao superintendente das pedreiras, para onde a família Burke se mudou em 1928, vinda de Santo Amaro, em São Paulo, foi construída de uma forma inusitada. Ficava numa encosta bastante íngreme no morro que ligava a pedreira "dois" e a pedreira "três" (ver fotos na página 28). Para construir a casa, foi feito um comprido corte na face do morro (um "dente" nivelado de aproximadamente 50m por 12m), de modo que na frente o terreno descia rapidamente, e nos fundos ficou um barranco, quase vertical, mais alto que a casa. Daquele local, em noites de lua cheia, era possível se avistar onças passando no alto do morro. Da frente da casa, avistava-se todo o vale de Água Fria e os grandes morros ao seu redor.
A casa, sem portas e janelas, para a qual os Burke tinham se mudado precariamente em 1928, foi sendo melhorada aos poucos. Logo foram colocadas as portas e janelas e construída uma lareira (1929 foi o ano de inverno mais frio de que se tem notícia naquela região). A casa foi sendo progressivamente "espichada" conforme as necessidades da família. Inicialmente, ela (a partir da esquerda, olhando-a de frente) era formada por uma comprida cozinha, com um fogão a lenha, mais tarde substituído por outro maior, com um grande forno e provido de uma serpentina para aquecer a água, que ficava depositada em dois grande cilindros presos na parede sobre ele. Anexo à cozinha havia uma sala de jantar com a lareira, ligada a três dormitórios, um pequenino banheiro (mais tarde ampliado com uma grande banheira de ferro esmaltado e chuveiro). Anexa à cozinha, havia uma despensa com prateleiras. Mais tarde foram construídas (em várias etapas), à esquerda da cozinha, dependências para empregada (dois quartos e um banheiro), e ao lado direito da sala outra grande sala de estar, mais dois quartos outra cozinha e um banheiro.
Ao longo de toda frente da casa havia uma grande varanda, com aproximadamente 3m de largura., onde a família passava grande parte do tempo. Esta foto foi tirada muitos anos mais tarde (1950), no canto esquerdo da varanda, bem em frente da grande cozinha. Ao redor da grande mesa (de pingue-pongue), estão reunidos num churrasco, Mr. Burke, D. Emma, João passos e alguns familiares do Dr. Milton Veras.
Ao redor de toda a casa havia uma calçada de cimento de 2m de largura. Encostado ao barranco, atrás da casa, ficava um "puxado", com um tanque de cimento e um grande forno de barro à lenha. Havia também uma enorme "geladeira" escavada dentro do barranco, com cerca de dois metros de profundidade por um de largura, no interior da qual uma pessoa podia ficar em pé. Rente ao teto, havia um cano de ferro com vários ganchos de açougue, onde eram penduradas as carcaças de porcos e carneiros, produzidos e consumidos pela família. A geladeira era fechada por uma grossa e pesadíssima porta de concreto (naquele tempo não existiam materiais isolantes térmicos). A refrigeração era conseguida pela colocação de longos blocos de gelo (de aproximadamente 25cm x 25cm e 1,5m de comprimento) num "túnel" retangular paralelo, na altura da parte superior da câmara frigorífica, e conectada com ela através de orifícios. As barras de gelo vinham, semanalmente, despachadas de São Paulo (fábrica da Antártica) pela estrada de ferro, embaladas em caixas de madeira e envoltas em serragem (o material isolante usado na época).
A casa era coberta com telhas de barro "francesas", e todos os cômodos eram forrados com tábuas finas. Um dia, uma grande pedra arremessada por uma "dinamitada" na pedreira "três" atravessou o telhado e o forro, ido parar perto das crianças, que brincavam na sala, causando um enorme susto. Preocupado, Mr. Burke mandou colocar um outro forro, de grossas tábuas de pinho, entre o forro fino e o telhado. Quando mais tarde novos cômodos foram acrescentados à casa, seus forros foram construídos em concreto.
Em 1936 ocorreu na região um surto de febre amarela transmitida por pernilongos (não existia vacina contra essa doença naquele tempo). Como medida preventiva, todas as matas mais próximas ao redor de Água Fria foram derrubadas. As portas, janelas e varanda da casa dos Burke foram protegidas por painéis removíveis de tela metálica, pintados de verde.
Devido ao fato de só haver uma escolinha primária (classe única) em Água Fria (a professora vinha e voltava de São Paulo todos os dias), e os novos Burke precisarem começar a estudar, John e Emma resolveram construir uma "escolinha" particular, um pouco acima da casa, na encosta. Era uma sala retangular, com lareira e prateleiras de cimento, e era coberta com laje de concreto (como medida de segurança contra pedras arremessadas pelas explosões nas pedreiras). Ali, D. Emma, que havia se formado professora primária antes de vir para o Brasil, passou a alfabetizar, em inglês, seus filhos e a lhes ensinar religião e as primeiras noções de matemática, geografia e história americana, até que atingissem idade suficiente para serem colocados em colégios internos em São Paulo. Tudo funcionava como se fosse uma verdadeira escola, com horário, disciplina e com programas, livros e cadernos importados dos Estados Unidos, para ir acostumado as crianças, desde cedo, às normas e costumes do ensino escolar formal pelo qual iriam passar futuramente.
A grande casa dos Burke ficava no centro de um grande terreno, uma espécie de sítio, formado por pastos, pomar, horta, roça, bosque, galinheiros, chiqueiros, tanque (de patos, marrecos e gansos) e pombal. O sítio era cercado por uma cerca de arame farpado e mourões de cimento. Mais tarde, devido à constante invasão de porcos e cabritos, que eram criados soltos pelos moradores da vila e causavam danos às plantações, foi construída uma mureta de placas de concreto, com 80cm de altura, ao longo de toda a cerca.
Nestas fotos aéreas aparecem a chácara e a comprida casa dos Burke. À esquerda estão os chiqueiros e galinheiros. Atrás e um pouco acima da casa está a escolinha particular (no meio de um pomar). O caminho que descia da casa até o pátio de manobras aparece à esquerda, passando pelo pasto com árvores, que ocupa toda a parte inferior da encosta. A casa que aparece um pouco abaixo do centro da foto é uma cabine de transformação de energia elétrica, de onde saia a eletricidade da chácara.
Desde a sua chegada à Água Fria, os Burke sempre foram ajudados por uma empregada doméstica e um empregado (que cuidava de tudo fora da casa, inclusive dos animais). Nos primeiros anos, a empregada foi a Helena (magrinha), que já trabalhava para a família em Santo Amaro. Depois foi a japonesa, Rosa Suzuki (a gorduchinha da foto), cujo marido, José ("O Suzuki"), trabalhava como mecânico na Cia.Perus. Quando Suzuki em 1936 pegou tuberculose e foi internado num sanatório em Campos do Jordão (naquela época não havia outro tratamento para o mal), Rosa, com sua filha Suzana ("Suzy"), recém nascida, passaram a morar com os Burke. Em 1939, quando os Burke mudaram para Perus e depois São Paulo, Rosa foi viver com eles, inclusive acompanhando a Mary (também com tuberculose) enquanto ela morou em Mogi das Cruzes. Finalmente, depois da morte de Mary, Rosa foi viver novamente com o marido Suzuki (que estava curado) em Campos do Jordão, onde eles abriram uma oficina de bicicletas. (na foto estão Peggy, Rosa, Suzy e Tommy).

A família cresce e começa a se dispersar

Ao se mudarem para Água Fria, em 1928, Mr. Burke e D. Emma trouxeram consigo seus filhos nascidos em Santo Amaro: Mary, com 8 anos; Margareth (Peggy), com 7 anos; John, com 5 anos; Henrietta (Teta), com 4 anos, e Charles (Carlito), com 2 anos. Em 1931 e em 1932 nasceram Thomas (Tommy) e Edward (Eddy), ambos no Hospital Samaritano (do Dr. Lane), em São Paulo.
Nesta foto de 1933, vê-se (da esquerda no alto): Eddy, no colo de Mary; Peggy; John, Teta, Carlito e Tommy. Ao fundo, o vale do córrego Água Fria, o "Morro Grande", e mais ao longe, o "Morro Redondo" (situado ao lado da pedreira Pires).
Mr. Burke tinha um excelente salário, o que lhe permitia colocar todos os seus filhos em regime de internato nos melhores colégios de São Paulo. Em 1931, John, com 8 anos de idade, foi colocado, em regime de internato, no Colégio São Bento, dos padres beneditinos, no Largo São Bento, em São Paulo. Fugiu de lá, não se sabe como, e apareceu em Água Fria, mas foi prontamente levado de volta, onde ficou até 1941. Em 1930, Mary, com 10, e Peggy, com 9 anos, foram colocadas internas no Colégio Des Oiseaux, das Cônegas de Santo Agostinho, na Rua Caio Prado, em São Paulo. Em 1934, Teta, com 10 anos, teve o mesmo destino.
O pai de Mr. Burke, Charles Francis Paul Burke e sua esposa de segundo matrimônio, Julia Eleonor Martin, vieram dos Estados Unidos (de navio) visitar a família em Água Fria. Estiveram lá em 1931 e 1933. Em 1936, Julia, agora viúva, voltou só e ficou seis meses. Estas fotos são da visita de 1933, onde também aparecem Tommy e Eddy. Frances Hennesy, amiga de infância de D. Emma, também veio visitar os Burke em 1934, 1937 e 1939.
Em fins de 1934, Carlito, com 8 anos de idade, começou a se sentir mal e apresentar dificuldade de coagulação do sangue. Foi levado para o Hospital Samaritano, em São Paulo, onde foi diagnosticado que ele sofria de hemofilia. Passou a receber transfusões de sangue do pai, a cada 3 meses. Foi internado e acabou falecendo em 01/06/1935, com 9 anos de idade. Foi sepultado no Cemitério São Paulo, no bairro de Pinheiros. No mesmo mês, morria nos Estados Unidos seu avô Charles, em homenagem a quem havia sido batizado.
Em 1939, quando se iniciava na Europa a Segunda Grande Guerra, Mr. Burke foi transferido para Perus, para superintender a fábrica da companhia, e a família se mudou para sua nova residência, ocupando a casa destinada ao superintendente (ver próximo capítulo). Em 1942, ele foi reconduzido ao seu antigo posto de superintendente das pedreiras em Água Fria, voltando a viver lá. D. Emma, John, Tommy e Eddy foram viver em São Paulo, onde Mr. Burke os visitava nos fins de semana.
Da frente da casa dos Burke em Água Fria descia um caminho, de 100m, em largos degraus, até o portão de entrada da chácara, que dava acesso direto ao pátio de manobras da ferrovia, perto da cabine de controle do tráfego. A foto foi tirada em 1938, na frente do portão, e é a única foto na qual a família toda (exceto Carlito, que havia falecido 3 anos antes) aparece reunida.
Os "vizinhos" mais próximos dos Burke moravam a cerca de um quilômetro de distância, nas vilas que ficavam além do pátio de manobras (ver foto na página 28).

Curiosidades e Historinhas

Logo após chegarem à Água fria, John passou a ser chamado por todos de "Mister Burke", e Emma de "Dona Emma", nomes pelos quais foram conhecidos pelo resto de suas vidas. John chamava Emma de "Em" ou "Emma", e Emma chamava John de "Jack". As crianças tratavam os pais de "Daddy" ou "Dad" e de "Mummy" ou "Mom". Os pais conversavam entre si e com os filhos em inglês, já os filhos preferiam conversar entre si em português.
Mr. Burke era de estatura mediana, um pouco acima do peso ideal, e ficou calvo bem cedo (ver foto na pg. 12). Usava botas de cano curto e às vezes vestia polainas. Sempre que saia usava chapéu ou um capacete quase branco, daqueles típicos dos exploradores ingleses. Também costumava levar consigo um "walking stick" (pau de caminhar), uma espécie de bengala, "para matar cobras", como dizia (de fato havia muitas cascavéis, jararacas e corais na região). Fumava cigarros da marca "17", e gostava de tomar uma garrafa de cerveja Antártica no almoço e um gole de whisky White Horse antes do jantar.
A Cia Perus possuía um veículo de bastante estranho: um automóvel Ford 1929, de capota conversível, especialmente adaptado para correr sobre trilhos. Era usado para serviços extraordinários ou de emergência. Mais tarde, ele foi substituído por um Ford 1935, de capota rígida, batizado de "baratinha" (foto). As rodas originais foram substituídas por rodas de trem. Na frente, foi instalado um "lipa-trilhos". O volante permanecia no lugar, mas desligado das rodas. Os bancos eram de madeira. Como o veículo precisava trafegar longos trechos de ré, foi acoplada uma segunda caixa de câmbio entre o diferencial traseiro e a caixa original. Para viajar para trás, bastava engatar a marcha ré da caixa original e depois ir engatando a 1a, 2a e 3a marchas da caixa extra.
Além da baratinha, a Cia tinha um outro veículo ferroviário estranho, a "charanga", totalmente aberto. Consistia de uma plataforma sobre a qual havia dois bancos, um de costas para o outro. Era movido por um pequeno motor a gasolina (não tinha caixa de câmbio). Na frente de um dos bancos, havia duas alavancas manuais (a "embreagem" e o breque) e uma alavancazinha lateral (o acelerador). A "embreagem" funcionava por meio de uma correia, que passava por uma polia no eixo do motor e outra no eixo das rodas. A correia podia ser esticada ou afrouxada pela alavanca da "embreagem", ligando ou desligando a tração. Mr. Burke usava a "charanga" para supervisionar os trabalhos nas pedreiras do Pires e de Gato Preto. Tommy e Eddy gostavam de acompanhá-lo nessas viagens, inclusive por que Mr. Burke os deixava dirigir aquela espantosa viatura. Mais tarde, a "charanga" foi substituída pelo "caranguejo" com motor diesel e os bancos colocados lateralmente. Nesta foto de 1949, aparecem sobre o "caranguejo" 3 funcionários da Cia. Perus; Tommy (canto direito), Milton Veras (erguendo o chapéu), e Eddy (erguendo uma espingarda de ar comprimido).
Durante o período da Segunda Grande Guerra, devido à total escassez de óleo combustível, as locomotivas da Cia Perus foram modificadas para queimarem lenha. As fagulhas saídas da chaminé costumavam causar queimaduras nas roupas dos passageiros, o que somente era percebido pelo "cheiro de queimado", quando o estrago já tinha sido feito. Durante esse período, para atender ao grande consumo de lenha pelas locomotivas e fornalhas da fábrica de cimento, a Companhia recorreu a terceiros para a compra de enormes quantidades de lenha, o que causou um enorme desmatamento em toda a região. Não podendo prever quanto tempo duraria a falta de óleo, a Cia Perus começou a fazer grandes plantações de eucalipto nas áreas desmatadas. Alguns anos depois do término da guerra, as locomotivas e os fornos voltaram a queimar óleo combustível e a Cia de Cimento Perus se tornou uma grande fornecedora de madeira de eucalipto para terceiros, especialmente para fábricas de papel e celulose.
A rede telefônica pertencia à Cia Perus, e funcionava com grandes pilhas, que precisavam ser trocadas periodicamente. As ligações passavam sempre pela telefonista. Os aparelhos telefônicos eram caixas de madeira, penduradas na parede, no interior das quais ficavam duas grandes pilhas e o gerador de sinal. Na parte frontal, havia um bocal, e sobre ele duas sinetas; do lado esquerdo, um gancho, que segurava o fone de ouvido; do lado direito, uma manivela para gerar o sinal de chamada à telefonista.
Os Burke possuíam um aparelho espantoso (um imenso rádio Philips, o que havia de mais moderno no mundo naquela época. Tinha cerca de 80 cm de altura, 40 cm de largura e 30 cm de profundidade. Era todo de aço, pintado de preto. Pesava uns 20 kg (só o alto-falante devia pesar uns 3 quilos). Na parte inferior da frente havia uma grade telada, por onde o som saia. Na parte superior ficava o painel de controle, com uma janelinha vertical de 5cm x 2cm, através da qual se via o dial, uma roda branca com números ligada ao botão de sintonia dos canais; a alavancazinha ON-OFF e o botão VOLUME. A parte de trás do aparelho era fechada por duas portinholas com grades, que permitiam a ventilação e o acesso às partes internas do aparelho. O rádio funcionava com grandes válvulas eletrônicas. Só pegava ondas longas e precisava ser ligado a uma grande antena erguida fora da casa (um fio de cobre horizontal de uns 15m). Além de pegar mal poucas estações, sofria interferências de muita estática, principalmente quando haviam tempestades nas redondezas. Para poder captar notícias do exterior (EUA e Inglaterra), Mr. Burke comprou um aparelho complementar só para ondas curtas (uma caixa de madeira com válvulas etc.), que ficava sobre o grande rádio e a ele ligado, mas só se conseguia pegar alguma estação durante a noite e com muita dificuldade. Depois de ligar os aparelhos, antes que eles pudessem funcionar, era preciso esperar algum tempo para que as válvulas esquentassem o suficiente.
Os Burke conservavam muitos hábitos alimentares da cultura norte-americana. O "breakfast" era reforçado. Começava com "grapefruit" (pomelo), que eram cortados em metades na noite anterior, salpicados com açúcar e colocados na geladeira até a manhã seguinte. A seguir, vinha o tradicional "bacon and eggs" (ovos e toucinho fritos) e "porridge" (mingau de aveia), além do café com leite, pão torrado com manteiga e geléia. No almoço, comiam salada (alface, pepino, rabanete, tomate, abacate etc.); carne (vaca, porco, carneiro, coelho, pato, marreco, ganso, peru, galinha, fígado, rim, bucho, miolos etc.), geralmente com molhos; purê ou batata assada, milho verde, vagem e, às vezes, "Boston backed beans" (feijão branco com toucinho e melado, assado no forno). Nunca comiam arroz e feijão. A sobremesa era pudim de chocolate, sagu no creme, "pumpkin pie" (torta de abóbora com noz moscada), torta de morango, "nervous pudding" ("pudim nervoso", de gelatina) etc. À tarde ("tee time") tomavam chá preto com biscoitos. O jantar era mais leve, sempre começando com um prato de sopa cremosa, ou canja de galinha, seguida de salada e algum outro prato e sobremesa. D. Emma costumava fazer uma grande variedade de "receitas americanas", salgadas e doces. Também fazia conservas de verduras e geléias de frutas, que eram guardadas em frascos, previamente fervidos e depois fechados com tampas lacradas com parafina. Ela também preparava e assava o pão e bolos, bolachas e biscoitos.
Os Burke costumavam tomar seus banhos antes de irem para a cama e consideravam "supertição" o medo que os brasileiros tinham de tomar banho logo após as refeições.
D. Emma costurava roupas para toda a família, e também fazia acolchoados e travesseiros, com lã de carneiro e penas de ganso produzidos pelos próprios Burke. Quando as crianças iam para a cama, ela lia para elas capítulos das histórias de animaizinhos, dos livros da coleção "Peter Rabbit Tales" ("Contos do Coelho Pedro", uma espécie de Pernalongas daqueles tempos). Nesta foto ela estava com 39 anos de idade, e carrega Tommy nas costas.
Mr. Burke, que tinha se formado em contabilidade antes de vir para o Brasil, foi aos poucos se tornando um verdadeiro engenheiro de minas, geólogo e minerologista. Além da prática que ia adquirindo, comprava e estudava livros sobre essas matérias e freqüentemente trocava idéias com o Dr. Moraes Rego (à direita na foto), professor da USP, que dava assessoria à Cia Perus, e que ia periodicamente à Água Fria, hospedando-se com os Burke e tendo se tornado um verdadeiro amigo da família. *Nesta foto aparecem Mr. Burke (ao lado do Dr. Moraes, de terno branco) e dois outros altos funcionários da Cia. Perus.
*Dr. Moraes Rego, professor da Escola Politécnica da USP. Faleceu em 25/06/1940. Tinha só 43 anos de idade. Foi encontrado morto no apartamento onde vivia sozinho. Como não tinha parentes, seu sepultamento foi feito pela Escola.
Mr. Burke desenvolveu, além dos seus conhecimentos, o que se poderia chamar de uma "atitude científica" (entender cientificamente a realidade e agir de acordo com ela), e procurava sempre passar aos filhos essa mesma atitude. Intuitivamente, usava de uma pedagogia revolucionária para aquela época: observar atentamente, pensar e chegar a uma conclusão. Ao em vez de simplesmente responder às perguntas e curiosidades espontâneas dos filhos, aproveitava-as para estimulá-los a pensar e a pesquisar (coisa que, infelizmente, até hoje, as escolas não costumam fazer…). Estimulava os filhos a consultar com freqüência a coleção de 12 volumes do "Book of Knowledge" (Livro do Conhecimento), uma enciclopédia fartamente ilustrada. Só para exemplificar essa "pedagogia", eis dois exemplos que talvez expliquem um pouco por que os irmãos Burke também vieram a manifestar ao longo da vida uma "atitude científica" semelhante: Numa ocasião, a família estava reunida na cozinha tomando o chá da tarde, enquanto lá fora desabava um temporal. Tommy, olhando pela janela, perguntou "daddy, why does it rain?" (papai, por que é que chove?). Mr. Burke pensou um pouco, e disse: "let’s make an experiment" (vamos fazer uma experiência). Levantou-se, pegou uma frigideira, pôs um pouco d’água dentro e a colocou sobre o fogão a lenha, que ficava sempre aceso. Disse para Tommy e Eddy chegarem bem para perto do fogão, para observarem e irem dizendo o que vissem (tudo em inglês, como de costume). Quando eles disseram "está começando a sair uma fumacinha…", e um pouco depois, "está fervendo e subindo fumaça!", Mr. Burke pegou um prato (frio) e o segurou, invertido, sobre o vapor que subia da frigideira, mandando os meninos ficarem olhando para a sua parte inferior, e irem dizendo o que eles viam. Logo, foram exclamando, aos poucos: "ta ficando molhado… ta formando gotinhas…. ta pingando água!", um deles então disse, encantado, "it’s rainning!" (ta chovendo!). Mr. Burke pôs o prato de lado, tirou a frigideira do fogo, e começou a conversar com eles, explicando que na natureza o calor do sol fazia evaporar lentamente a água dos mares, rios, lagos e da terra molhada, mas que não se podia ver o vapor subindo, como o da frigideira e do bico da chaleira, por que o calor do sol não chegava a ferver a água. Explicou, também, que bem lá no alto o ar era muito mais frio que aqui embaixo (assim como o prato era bem mais frio que a frigideira), e por isso o vapor invisível que subia começava a formar gotinhas, que iam crescendo, formando as nuvens, e quando as gotas ficavam bem grandes, com as nuvens ficando escuras, elas começavam a cair na forma de chuva. Aproveitou também para explicar por que, às vezes, chovia pedras de gelo.
Noutra ocasião, logo após o jantar, quando já estava escurecendo, uma das crianças perguntou "Daddy, por que é que tem dia e noite?" (em inglês, é claro). Novamente, ao em vez de responder prontamente, ele levantou-se, foi até a cozinha, pegou uma laranja e um palito, voltou e disse algo do tipo: "vocês já sabem que a Terra é uma grande bola que gira no espaço (tinha lhes dito isso anteriormente). Vamos fazer de conta que esta laranja é a Terra, e que está lâmpada (que ficava pendurada sobre a mesa de jantar) é o Sol, e que este palito (espetando-o na laranja) é uma pessoa vivendo na superfície da Terra. Aproximou a laranja até cerca de um metro da lâmpada, com o palito apontando para ela, e perguntou o que eles notavam na sua superfície. As crianças foram logo dizendo que do lado voltado para a lâmpada a laranja estava "no claro", e que do outro lado ela estava "no escuro". Mr. Burke começou, então, a girar lentamente a laranja, até parar com o palito no lado da sombra, e perguntou o que tinha acontecido. Quando disseram que o lado que antes estava no claro agora estava no escuro, e o que estava no escuro agora estava no claro, ele simplesmente continuou girando a laranja lentamente, várias vezes, perguntando "o que acontece com este sujeito?" (apontando para o palito). Na conversa animada que se seguiu, todas as diferenças entre a laranja e a Terra, e a lâmpada e o Sol foram devidamente esclarecidas, e ninguém ficou mais com dúvidas por que existia dia e noite.
Todas as crianças Burke foram alfabetizadas em inglês e receberam as primeiras noções de matemática, geografia e história por D. Emma, antes de irem para os colégios em São Paulo. Henrietta fala sobre esse ensino pré-escolar da seguinte forma:
Todos nós fomos "desasnados" pela mãe, que era professora formada nos U.S.A. Em parte foi bom, em parte foi uma tragédia – Português – Eu tinha idade e conhecimentos suficientes para entrar no 3o. ano primário – Primeiro dia de aula – Cadernos lindos, etc. Prof. de Português – D. Adalgiza. Tudo de acordo – entreguem os cadernos. Aula seguinte, professora indignada queria saber de quem foi a brincadeira de mau gosto, mas apenas disse: "Quem é Henrietta?" Muito feliz, levantei a mão. – "Pegue suas coisas e vá para o segundo ano – se não para o primeiro!". Note-se: eu havia escrito: "Prof. Salxixa" – Penei, padeci – mas consegui passar do 4o. ano para o 1o. ginasial sem ter que cursar o admissão.
"Tragédias" semelhantes em relação ao português aconteceram com todos os Burke quando foram colocados na escola, mas todos acabaram conseguindo passar para o 1º. ginasial sem ter que cursar o "admissão".
A "criançada" (como costumava dizer a ajudante Rosa Suzuki) vivia brincando, se divertindo e aprontando... Construíam cabanas em cima de árvores e em escavações no barranco, caçavam com espingarda e estilingue; "nadavam" em represas, rios e córregos, e até, escondido, no tanque dos patos...
Outro divertimento da criançada era montar cavalos. Possuíam o velho decrépito e preguiçoso "Branquinho", que morreu logo; o garboso "Magnésia", de cor vermelha; o tranqüilo "Baio", de cor creme, e "Ghosty" (fantasminha), todo branco e mal humorado. Nesta foto de 1935, Tommy monta Magnésia, Eddy monta Baio. Mary, em seu traje de montaria, segura as rédeas dos cavalos e apóia a mão direita na cabeça de John. Peggy, exibe seu traje de ocasião e Teta se protege do sol com seu sombreiro. Wolf, o pastor alemão da família, espera pacientemente a cavalgada começar, e mostra não estar nem um pouco interessado em sair na foto.
A criançada gostava de pescar lambaris, carás e até bagres e traíras no córrego e em lagoas, com "equipamento" improvisado. Como nos primeiros tempos em Água Fria não se podia comprar varas de bambu, linhas e anzóis, improvisavam, usando varas de "veludinho" (um arbusto que produz umas frutinhas roxas peludas ao longo de ramos longos e flexíveis); linha de costura, e anzóis feitos com alfinetes entortados, devidamente surrupiados da caixa de costura de D. Emma. A isca era facilmente obtida: bastava ir ao quintal e arrancar algumas minhocas "bravas". A paixão pela pesca, que Tommy e Eddy conservam até hoje, provavelmente começou com aquelas primeiras pescarias.
Hoje, com mais de setenta anos de idade, eles pescam dourados, pacus, pintados e tucunarés, tilápias javanesas, robalos, sargos e outros peixes, no Pantanal de Mato Grosso, na represa do Tietê em Pereira Barreto-SP, na baia da Babitonga, em São Francisco do Sul-SC, ao largo da costa e dos mangues de Santos e São Vicente-SP, e em pesqueiros "pesque-pague", em Londrina-PR; usando varas de fibra-carbono com molinetes coreanos, linha "sem memória", anzóis noruegueses e, como isca, tuviras, caranguejos, camarões vivos, iscas artificiais e "massinha"... Nesta foto da pescaria em Perreira Barreto, aparecem: Tommy (sem camisa), Eddy, e, nas pontas, os filhos do Eddy: Paulinho (com um tucunaré) e Carlinhos.
Parece que a dupla Tommy e Eddy foi especialmente traquina, provavelmente por terem nascido depois de um intervalo de quatro anos após o nascimento do Carlito, e terem apenas pouco mais de um ano de diferença de idade entre eles, sendo tratados pela família quase como se fossem uma única pessoa caçula. Eram chamados de "Tommy-Eddy" (sem o "e" entre um e outro). Eles também eram chamados de "The Scorpions"... Dentre as muitas artes que a dupla aprontou, três se tornaram memoráveis:
Num dia em que Mr. Burke e D. Emma estavam em São Paulo cuidando do Carlito, jogaram uma bolinha de vidro que quebrou o vidro do grande relógio, que ficava sobre a lareira, uma relíquia valiosa da família (atualmente está com a Teta, em Santos). Apavorados com o que lhes iria acontecer quando os pais voltassem, resolveram inventar uma história salvadora, para explicar como o desastre tinha acontecido.
Quando, alguns dias depois os pais voltaram e a "hora do juízo final" chegou, eles disseram, com as carinhas mais inocentes do mundo, que "o ganso entrou voando pela janela, bateu no relógio e quebrou o vidro..." A surra foi dupla: uma por terem quebrado o vidro, e outra por terem mentido de forma tão sem vergonha... Teta, que de longe assistia à cena, tratou logo de se esgueirar para a cozinha, para não ser também incriminada...
Noutra ocasião, Tommy e Eddy, intrigados com o fato de verem que os patos e marrecos nadavam sem problemas, enquanto que as galinhas (que às vezes caiam acidentalmente no tanque) não conseguiam nadar e acabavam morrendo afogadas, trataram de elaborar uma teoria explicativa (talvez já contaminados pela "atitude científica" de Mr. Burke...). Concluíram que os patos e marrecos estavam cheios de ar, fazendo com que boiassem, e as galinhas não tinham ar por dentro. Para testar sua teoria, pegaram um pato e, com uma faquinha cega (usada para tirar barro dos sapatos), fizeram, sob os veementes protestos do pobre pato, vários buracos profundos no seu corpo, "para deixar o ar sair", e o jogaram sangrando no tanque. O resultado foi surpreendente: o pato morreu logo, mas, estranhamente, não afundou como a teoria previa. Frustrados e confusos, resolveram ir brincar com outras coisas menos misteriosas. Quando o pato foi encontrado e examinado (para se descobrir a causa da sua morte), os responsáveis foram prontamente identificados e interpelados. Eles simplesmente se justificaram contando por que tinham feito aquilo. Salvaram-se de uma boa surra (por terem contado a verdade), mas não de um longo sermão sobre crueldade para com os animais. Talvez Tommy já estivesse começando a mostrar seu interesse por ciência, que mais tarde o levaria a se tornar professor de metodologia científica, em cursos de pós-graduação da USP...
Mas os moleques nem sempre eram muito "científicos". Um dia Tommy convenceu Eddy, que estava bravo por ter tomado uma surra da mãe, injusta segundo ele, a se vingar jogando uma pedra na D. Emma, que estava sentada costurando na varanda. Disse, também, que depois de jogar a pedra ele deveria correr para fugir dela, e se enfiar debaixo de um pinheiro novo (que tinha os ramos inferiores cheios de "agulhas" pontiagudas, quase raspando o chão), onde ela não conseguiria pegá-lo. Dito e feito, a pedrada foi certeira, só que o impossível aconteceu: D. Emma rastejou por baixo do pinheiro, apanhou e arrastou Eddy para fora, e deu-lhe a maior surra da sua vida. Tommy, depois, teve que ouvir, um montão de vezes, a acusação: "Você disse que minha mãe não ia conseguir me pegar!" Até hoje, quando eles se encontram e começam a relembrar os velhos tempos de infância, Eddy culpa Tommy pelas memoráveis palmadas que tomou naquele dia... talvez nunca o tenha perdoado totalmente… (Em Perus, a dupla aprontou mais algumas… ver próximo capítulo).
Os Burke, quando foram viver em Água Fria, costumavam passar as férias de julho no Guarujá, onde John e Emma tinham vivido no início da década de 1920. Na foto, de 1933, estão: Mary, Teta, Peggy, John, Tommy e Eddy.
Mais tarde os Burke passaram a freqüentar a praia da Bertioga. Lá, gostavam de sair, com o pescador Pedro Damião em sua grande canoa, para pescar, com "linha de fundo" segurada na mão. Mr. Burke e D. Emma também participavam das pescarias.
Esta foto foi tirada em 1939, antes de saírem para uma manhã de pesca no canal. Ao lado do pescador Pedro, estão: Teta, Mary, Peggy, John, Tommy e Eddy. Tommy, muitos anos mais tarde, já casado, voltou sozinho, várias vezes, a pescar de canoa, no canal da Bertioga e nos manguezais do município de São Vicente, da forma que aprendera na infância com o velho pescador Pedro.
4 – VIVENDO EM PERUS E RETORNANDO À ÁGUA FRIA (1939-1951)
Um Período de Grandes Mudanças
Quando Mr. Burke foi transferido em 1939 para a superintendência da fábrica de cimento em Perus, ele mudou-se com a família para a casa destinada ao superintendente, que ficava numa grande chácara, quase no topo do morro que começava ao lado da estação de Perus (da SPR). Ela distava cerca de um quilômetro da fábrica. Dali tinha-se uma vista de todo o grande vale por onde passava a ferrovia, de boa parte da vila de Perus e dos grandes morros ao seu redor.
Vista aérea da fábrica de cimento da Cia. Perus em 1939. A linha férrea começava ao lado da estação Perus, da SPR (escondida sob a fumaça à esquerda da foto), atravessava toda frente da fábrica e seguia rumo à Água Fria. Na parte de baixo da foto estão oficinas, escritórios, laboratórios, residências da vila operária. No canto esquerdo inferior (entre as árvores) aparece a "Casa Grande", pensão na qual Mr. Burke morou de 1926 a 1928. Um pouco para a direita dos silos da fábrica, vê-se dois caminhos que se juntam na entrada da fábrica (logo acima do vagão que transportava cimento). O caminho de baixo vinha diretamente da estação da SPR. O caminho de cima passava bem em frente da casa na chácara dos Burke, que aparece meio escondida entre as nuvens de fumaça da fábrica (finíssimas partículas de pó de cimento).
A casa do superintendente da fábrica de cimento Perus, possuía duas grandes salas, lareira, três dormitórios, cozinha, banheiro e uma ampla varanda na frente. Nos fundos, rente ao barranco, havia uma garagem (que servia de depósito), um banheirinho e uma despensa. Sobre essas dependências externas foi construído um apartamento, com dois quartos, banheiro e ampla varanda. A chácara tinha jardins, horta, árvores frutíferas, roça, pasto, estábulo, galinheiro, tanque para patos, gansos e marrecos; quadra de tênis, cancha de bocha, quiosque e churrasqueira. O pasto e os estábulos eram ocupados pelos cavalos "Baio" de cor creme, e "Ghosty" ("Fantasminha"), totalmente branco, que os Burke montavam para passeios pela região. Nesta foto (tirada vários anos depois de os Burke terem morado ali), aparecem a casa do superintendente e uma composição da EFPP saindo da estação de Perus rumo à Água Fria.
No carnaval de 1939, as grandes amigas de infância e adolescência de Emma, Frances Hennessy e Anna Colligan, vieram dos Estados Unidos visitar os Burke e levam Mary e Peggy para passear no Rio de Janeiro. Tommy e Eddy se vestiram a caráter para recebê-las... Nesta outra foto (inverno de 1940), tirada num dia de churrasco, estão: Mr. Burke, com seu inseparável capacete; D. Emma; Tommy, com pedaços de carne nas mãos e na boca; Eddy, segurando uma garrafa de refrigerante (Tubaína), e Teta, espiando por sobre o ombro de D. Emma.
Nesta foto de 1939, aparecem: Mary, com 19 anos (pouco antes de adoecer); John, com 16; Peggy, com 18, ao lado de seu "quase noivo" (Orlando Graner, estudante de medicina); Tommy, com 8 e Eddy, com 7 anos de idade. A rede devia ser super resistente...
Nesse mesmo ano, Mary adoeceu e o diagnóstico acusou tuberculose. Foi internada num sanatório especializado em Campos do Jordão, pois o único tratamento receitado para o mal na época era "boa alimentação e muito repouso, num clima de montanha" (não havia vacinas, remédios ou antibióticos para tuberculose naquele tempo). Durante o tempo em que lá esteve, conheceu no sanatório José Gonçalves (desenhista ilustrador de obras médicas), que se recuperava depois de ter se submetido à operação "costela" (para isolar e desativar o pulmão afetado). Mary e José se enamoraram e ficaram noivos, mas como Mary não apresentava melhoras no seu estado, John e Emma resolveram alugar uma casa em Mogi das Cruzes, onde Mary foi morar, tendo como acompanhante a Rosa Suzuki.
Foto tirada em 1939, em Água Fria, no alto da pedreira 2. Teta havia conhecido João Passos em Perus e estavam namorando. Mary está sobre um monte de pedras, atrás de João. Mr. Burke está atrás da carroça e Tommy e Eddy dentro dela. Ao fundo vislumbra-se a chácara com a grande casa dos Burke.
Em 1940, Tommy, com 8 anos, e Eddy, com 7, foram colocados internos no Colégio São Bento, em São Paulo, tendo o mesmo "triste destino" do irmão John, que havia sido colocado lá em1931. (ver o porquê do "triste" em "Curiosidades e Historinhas").
Em fevereiro de 1941, Peggy, com 20 anos, rompeu com Orlando, decidiu se tornar freira e foi para o convento das Cônegas de Santo Agostinho, em São Paulo. Nunca ficou muito claro se ela rompeu com Orlando para ser freira, ou se foi ser freira porque rompeu com orlando. Nesta foto ela aparece no dia em que completava seu jubileu de freira.
Em 14/07/1941, Teta se casou com João Ferreira Passos, que trabalhava como despachante na estação de Perus, e o novo casal foi morar numa casa da ferrovia. "Passos", como era chamado, havia nascido em 23/03/1913, em Geremoabo, no sertão da Bahia, e quando moço havia tomado parte numa brigada para-militar (uma "volante") que perseguia o bando do famoso cangaceiro Lampião através do sertão nordestino (ver Apêndice E). Em agosto de 1942, Passos foi transferido para a Estação do Ipiranga, em São Paulo, e o casal mudou-se para o bairro do Ipiranga e depois para Vila Prudente, onde nasceram seus filhos Mary e João.
Foi nessa ocasião que Mister Burke e Dona Ema compraram um sítio, com aproximadamente cinco alqueires, em Mogi das Cruzes (parte da antiga fazenda "Caraças"), "para", como diziam eles, "quando nos aposentarmos". Pagaram por ele vinte contos de réis (o salário de John naquela época era de seis contos por mês, que equivaleria, possivelmente, a cerca de 10.000 dólares, hoje). Batizaram-no "Sítio Sétimo Céu".
Em 1941 Mr. Burke foi reconduzido pela Companhia Perus para Água Fria, porque as pedreiras estavam tendo muitos problemas. O casal decidiu, então, estabelecer uma segunda moradia em São Paulo, para facilitar a educação de John, Tommy e Eddy (libertando-os do internato). Alugaram uma casa na Rua Tanabi, no bairro de Água Branca, para onde D. Ema e os três filhos se mudaram (ver próximo capítulo).
Mister Burke retornou à Água Fria, para viver sozinho na antiga casa, que tinha sido "espichada" mais um pouco, com a adição de mais um dormitório, uma cozinha e um banheiro, e dividida "ao meio", para acomodar também a família do médico residente da Companhia: primeiro, Dr. José de Oliveira Ramos e sua esposa D. Celeste, e depois, Dr. Milton Spencer Veras e sua mulher Margarida ("D. Margot"). Algum tempo depois, Dr. Milton e família mudaram-se para Perus, e aquela parte da casa foi ocupada por um engenheiro de minas canadense (Roque Lavoie e sua esposa Berta), contratado pela Cia Perus para ajudar Mr. Burke na administração das pedreiras. Roque recebeu um jeep, o que veio facilitar muito os trabalhos da superintendência.
Ali, Mister Burke passava a semana, sendo a casa cuidada por uma empregada, a Albertina, que não resistia à tentação de comer tudo que Mr. Burke guardava na geladeira... Ele ia visitar a família em São Paulo nos fins de semana.
Nessa ocasião, a Via Anhangüera estava em fase final de construção, e logo surgiu uma linha de ônibus que ia da Lapa, em São Paulo, até Gato Preto, e família passou a utilizá-la nas suas idas e vindas entre São Paulo e Água Fria. No trecho entre Gato Preto e Água Fria (cerca de 7 kms), continuavam a usar o trem "Eme", o "caranguejo", ou a "baratinha" da Cia Perus.
Em 1946, D. Emma deixou Tommy e Eddy em São Paulo, sob os cuidados de Teta e Passos, e voltou para junto de Mr. Burke, em Água Fria. Ficaram morando lá até 1951, quando Mr. Burke, após 25 anos de trabalho na Cia. de Cimento Perus, resolveu pedir demissão (sem qualquer direito a indenização ou a aposentadoria). Essa atitude, meio intempestiva (semelhante à que tomara em 1926 na Cia Light) foi tomada porque a companhia, à qual ele dedicara a maior parte de sua vida profissional, foi vendida pelos proprietários canadenses ao grupo Abdala (do deputado João J. Abdala), e porque, como disse ele, "Não vou trabalhar nem um dia para aquele ladrão!".
Mr. Burke e D. Emma disseram, então, adeus para sempre à Água Fria, e se mudaram para o sítio em Mogi das Cruzes, levando consigo poucos bens e muitas lembranças, e onde ficariam até o fim de suas vidas. Pouco depois, a Cia de Cimento Perus, sob a nova administração, entrou num período de muita agitação, com greves (coisa que nunca tinha acontecido antes), inclusive com a intervenção de uma tropa militar na fábrica, pois começou a faltar cimento na praça. Mr. Burke, no sítio, dizia: "Eu bem que estava adivinhando..." (Ver mais sobre a venda da Cia Perus e seu declínio nos Apêndices C).

Curiosidades e Historinhas

No dia em que os Burke se mudaram de Água Fria para Perus, levaram consigo "Wolf" (Lobo), o cachorro policial da família, e, ao chegarem à nova casa, prenderam-no numa corrente, com medo que ele, estranhando o local, aprontasse alguma. Mr. Burke voltou para Água Fria para tratar da mudança do resto das coisas que tinham ficado lá, onde passou a noite. Quando acordou na manhã seguinte, ficou espantado ao ver Wolf, molhado e sujo, abanando o rabo e pulando de satisfação ao ver seu dono. A surpresa foi causada pelo fato de que Mr. Burke tinha deixado Wolf acorrentado em Perus, a vinte quilômetros de Água Fria, pouco antes do anoitecer. Telefonou imediatamente para a família dando a notícia, o que foi motivo de alegria, pois todos estavam muito preocupados com o desaparecimento do cachorro querido (cedinho haviam encontrado a corrente arrebentada e nem sinal do Wolf). Todos ficaram muito admirados, especialmente por ele ter voltado até Água Fria, em poucas horas, na escuridão da noite, por um caminho desconhecido, não pela ferrovia, mas por um percurso mais direto pela mata, subindo e descendo morros, e atravessando rios e riachos, o que explicava o fato de ter chegado totalmente molhado e enlameado.
Talvez um dos maiores traumas da vida de Tommy e Eddy, tenha ocorrido quando eles foram colocados em 1940 para estudar, como internos, no Colégio São Bento. É fácil imaginar a "tortura" de dois moleques que nunca tinham ficado longe dos pais e irmãos; que tinham sido criados soltos, pescando, caçando, nadando pelados em rios e lagoas, "pintando e bordando", e que nunca tinham freqüentado uma escola se verem trancados num colégio de monges beneditinos, bem no meio da maior cidade do Brasil.
Não bastasse isso, foi simplesmente terrível terem que se submeter a uma disciplina "nazista" (como diziam), tendo que se levantar às seis, assistir missa na capela antes de tomar café (uma vez por semana eram obrigados a se confessar e comungar); assistir aulas o dia todo, somente interrompidas por um intervalo para o almoço e um pequeno "recreio" no pátio de terra. Eram obrigados a rezar antes de comer, tinham que ficar em silêncio, e comer arroz e feijão (comida que os Burke simplesmente não gostavam), e carne com um molho ralo ("carne humana", como a chamavam). Após o jantar, tinham que voltar à sala de aula, para estudar e fazer as lições, e depois ir à capela para rezar, antes de irem para o grande dormitório "dos menores", cujas grandes janelas davam diretamente para o Largo São Bento, de onde, em vez de sons de sapos, grilos e corujas, com os quais estavam acostumados, só se ouvia o barulho dos bondes que por ali circulavam.
Não bastassem essas torturas, eles eram obrigados a participar de exercícios do batalhão da escola, e desfilar fardados pelas ruas da cidade em dias comemorativos. Não é de admirar que Tommy, até hoje, às vezes, ainda sonha estar "no São Bento" e acorda assustado... Na sua opinião, compartilhada por Eddy, se há uma coisa que mereça ser chamada de "pesadelo", essa coisa foi o internato no Colégio São Bento. Felizmente ele durou só a "eternidade" de um ano letivo (no ano seguinte, mudaram para o regime um pouco menos terrível de semi-internato).
Quando Mr. Burke e D. Emma compraram o sítio, que ficava a 800 metros da estrada para Capela do Ribeirão (Km 4,5), foi lhes dito que aquela estrada iria ser prolongada até a praia da Bertioga, logo. Os Burke sempre sonharam com o dia em que poderiam descer com freqüência até a praia, coisa que costumavam fazer nas férias, desde os tempos de Água Fria, indo de trem até Santos e tomando a barca até Bertioga. Lá, hospedavam-se na Pensão Besser (ao lado do antigo forte), bem em frente da entrada do canal, e mais tarde na Pensão Paulista, do Seu Elias Nehme, uns quinhentos metros adiante, na frente da praia. Mas a estrada Mogi-Bertioga foi aberta somente muitos anos mais tarde pela Prefeitura de Mogi das Cruzes (gestão de Valdemar da Costa Filho), e depois assumida pelo Governo do Estado, quando só a família do Eddy ainda vivia em Mogi (ver 6 – Voltando a Viver no Campo).
John, Tommy e Eddy gostavam de "tomar banho" e "nadar" no riozinho que passava pela vila de Perus, perto da fábrica e ia desaguar no Rio Juqueri, perto de Caieiras. O local preferido ficava do outro lado da vila, distante uns dois quilômetros de onde moravam. Naquele ponto, o riozinho se alargava, formando um remanso, no centro do qual havia uma ilhota. Nadavam pelados, deixando a roupa estendida na relva. John nadava muito bem (mais tarde veio a se tornar campeão de nado livre dos 800 e 1.500 metros nos jogos universitários). Tommy e Eddy, só sabiam nadar "cachorrinho", ficando sempre bem perto da margem, onde dava pé. Um dia, John levou Tommy e Eddy até a ilhota e voltou para a margem, deixando-os ilhados, e insistindo para que eles voltassem sozinhos. Diante da falta de confiança dos dois irmãos em sua capacidade de vencer aquela distância, onde não dava pé, John resolveu blefar. Vestiu-se e disse que ia voltar para casa e deixa-los ali, e começou a ir embora. Meio desesperados, Tommy e Eddy se atiraram na água e sem muita dificuldade conseguiram chegar à margem. Eufóricos e confiantes, voltaram várias vezes até a ilhota...
Alguns dias depois desse glorioso acontecimento, os três estavam peladinhos e felizes na ilhota, quando surgiu um policial fardado, dizendo que não seria mais permitido nadar sem roupa ali, porque algumas mulheres que moravam perto dali, e de onde podiam avistar os moleques nadando pelados, tinham ido à delegacia reclamar. O guarda disse que se fossem pegos novamente sem roupa, seriam presos... Passados mais alguns dias, numa tardinha, lá estavam eles novamente nusinhos e felizes na margem do rio, quando viram o guarda se aproximando. Pularam na água e nadaram para a ilhota, pensando que o guarda não poderia prendê-los lá. O policial não se atreveu a entrar na água, apenas passou um tremendo sabão nos moleques, pegou todas as roupas deles e foi embora, dizendo que se quisessem reavê-las, teriam que ir até a delegacia. Assustados, resolveram esperar até que a noite chegasse, e depois irem para casa no escuro, para não serem vistos.
Quando escureceu, saíram nusinhos e foram para casa, atravessando toda a vila e a passarela sobre a estrada de ferro, ao lado da estação de Perus, se escondendo atrás de postes ou em terrenos baldios sempre que viam o vulto de alguma pessoa se aproximando. Quando finalmente chegaram em casa, a família estava preocupadíssima, pois Tommy e Eddy nunca chegavam em casa depois de escurecer. A preocupação virou um misto de alívio e espanto ao verem os dois chegando do jeito que vieram ao mundo... e logo contando o que acontecera. No dia seguinte, Mr. Burke foi com os dois (devidamente vestidos) até a delegacia, para pedir desculpas, prometer que o fato nunca mais se repetiria, e reaver as roupas. O delegado pediu mil desculpas pelo acontecido, dizendo que o soldado não sabia que os moleques eram filhos de Mr. Burke, pois se soubesse, ele nunca teria feito o que fez. Tommy e Eddy saíram com cara de estarem arrependidos, mas por dentro estavam felizes da vida, pois a fala do delegado significou para eles que dali em diante poderiam nadar pelados sempre que quisessem, e que o guarda nunca mais iria perturbar "os filhos do Mr. Burke"... Mas a festa durou pouco, pois logo se viram internos no Colégio São Bento em São Paulo. Até hoje, Tommy e Eddy não sabem explicar o motivo pelo qual se recusavam a levar seus shorts de banho quando iam nadar. Provavelmente, mais um daqueles mistérios insondáveis da mente humana...
Tommy e Eddy mantiveram seu fascínio por nadar em rios durante muito tempo. Nesta foto. eles estavam com 17 e 16 anos, respectivamente, e aparecem (agora com trajes de banho...) entrando no Rio Juqueri, em companhia de amigos da família Veras, perto da estação do Entroncamento da E.F.P.P.
Um dia, D. Emma mandou Tommy ir até o barbeiro, que ficava ao lado da estação, para cortar o cabelo, dizendo que era para pedir ao barbeiro para passar a "maquina zero" na cabeça toda. Tudo corria normalmente, até o momento em que o barbeiro foi chamado com urgência por algum motivo e saiu apressado, dizendo que voltaria logo e deixando o freguesinho na cadeira, com metade de um lado da cabeça raspada e a outra metade cabeluda. Passado mais de uma hora sem sinal do barbeiro, Tommy desceu da cadeira, tirou a toalha de envolta do pescoço e foi embora para casa. No caminho, as pessoas olhavam espantadas ao vê-lo com aquele estranho corte de cabelo... D. Emma quase caiu de costas quando viu Tommy chegar em casa daquele jeito... Depois do susto e dos devidos esclarecimentos, D. Emma resolveu esperar até o dia seguinte para mandá-lo de volta ao barbeiro, para terminar o corte e pagar os quatrocentos réis que devia pelo serviço. O coitado teve que passar pelo suplício de ver as pessoas olharem admiradas para ele outra vez..., mas, no fim, Tommy pôde voltar para casa com a cabeça em ordem (externa e internamente...).
Outra traquinagem da dupla Tommy-Eddy foi quase atear fogo na casa, quando decidiram acabar com os pernilongos que ficavam escondidos durante o dia na despensa. Pegaram um montão de jornais velhos e meteram fogo nele... Felizmente alguém conseguiu jogar água no "exterminador de pernilongos" antes que a coisa acabasse num grande desastre pirotécnico...
Foto da vila de Perus em 1948. Tommy e Eddy, junto com membros da família Veras, sobem o caminho que ia da estação de Perus até a casa onde os Burke viveram de 1939 a 1942 no alto do morro (agora ocupada por outra família). A estação ficava bem no centro da foto (parcialmente escondida por árvores). À esquerda da estação e ligeiramente acima, ficava o campo de futebol do clube SPR. Ao lado esquerdo do vagão de passageiros da Cia de Cimento Perus (que aparece um pouco abaixo e à esquerda da estação) vê-se algumas das casas da rua principal da vila, e pela qual Tommy e Eddy passavam indo e voltando dos banhos no riozinho, e por onde, num memorável anoitecer, passaram totalmente nus.


5 – APRENDENDO A VIVER NA GRANDE CIDADE (1941-1951)

Acostumando (quase) a viver em São Paulo

A primeira casa dos Burke em São Paulo, uma espécie de "filial" da casa da Água fria, foi alugada na Rua Tanabi (paralela à Av. Turiaçú e distante 800m da Av. Água Branca). Era um sobrado de dois pavimentos e mais um sub-solo. A família se mudou para lá em 1941, ficando Mr. Burke em Água Fria. Tommy e Eddy, que tinham estado internados no Colégio São Bento, passaram para o regime de semi-internato. Iam e vinham da escola de bonde da "Light" (The São Paulo Tramway, Light and Power Company, Limited), que passava pela Av. Água Branca e ia até o Largo São Bento. O bonde era praticamente o único tipo de transporte coletivo na cidade de São Paulo naquela época.
Vista da Igreja, Mosteiro e Colégio São Bento, onde John, Tommy e Eddy foram colocados internos em 1931 e 1940. Ali fizeram seus cursos, desde a primeira série até o último ano do "científico".
John terminou seus estudos no Colégio São Bento em 1941 e entrou no curso de Engenharia Civil da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, onde se formou em 1945.
Em 22/11//1945 ele se casou com Cecília Pedrosa Dantas e foi viver no bairro Santo Amaro.
Como o estado de saúde da Mary, que estava morando em Mogi das Cruzes em companhia da Rosa Suzuki, piorava, ela, já acamada, foi trazida de volta para São Paulo, para viver em companhia da mãe e dos seus irmãos. Em março de 1942, foi levada para o Hospital Samaritano, onde acabou falecendo no dia 01 de abril, com 22 anos de idade. Foi sepultada no Cemitério São Paulo, ao lado do irmão Carlito, que havia morrido em 1935. Alguns anos depois, José Gonçalves, o antigo noivo de Mary, se casou com a Lourdes, grande amiga de Mary desde quando ela tinha estado no sanatório em Campos do Jordão.
Em 1943, a família mudou-se para a um apartamento alugado na Rua General Jardim, próximo a Praça da República, para que Tommy e Eddy ficassem mais perto do colégio São Bento. Em 1945, mudaram-se para uma casa na Rua dos Franceses (atrás do Hospital), mas logo foram obrigados a se mudar novamente porque a parte dos fundos da casa, construída sobre um aterro de encosta (que dava para o vale da Av. 9 de Julho) desabou, felizmente sem vítimas.
Desta vez, para alegria de John, Tommy e Eddy, eles foram morar numa chacrinha (retorno à natureza...), pertinho da antiga Estrada de Santo Amaro (Av. Santo Amaro), desmembrada da grande "Chácara dos Ingleses", que ficava ao lado do Córrego da Traição (sobre o qual hoje passa a Av. dos Bandeirantes, na divisa entre Vila Nova Conceição e Brooklyn Paulista).
D. Emma voltou para viver com Mr. Burke em Água Fria e Tommy e Eddy foram deixados aos cuidados de Teta e Passos. Passos continuava trabalhando na Estação do Ipiranga. Nesta foto, de 1949, num dia de festinha, aparecem João, Teta, Joãozinho, Mary e Lúcia.
Durante as férias escolares, Tommy e Eddy iam para Água Fria, onde se divertiam em companhia de Milton e de outros filhos do Dr. Milton Spencer Veras e D. Margot, vizinhos que ocupavam metade da antiga casa dos Burke. Também iam para o sítio em Mogi das Cruzes.
Em 1949, John e Emma voltaram, de navio, aos Estados Unidos (a única vez), para uma visita aos seus parentes e à cidade de Nova York, de onde haviam partido 30 anos antes. Ficaram lá apenas dois meses, e voltaram dizendo "não agüentamos mais as saudades...", e trazendo muitos presentes.
Em julho de 1949, Tommy, Eddy, Milton e mais três amigos, foram acampar na "Prainha" da Bertioga, do outro lado da ilha de Santo Amaro. (Na foto, Tommy joga peteca com Milton em frente das barracas).
Uma manhã, eles foram de canoa (emprestada de um pescador) até a vila de Bertioga, para comprar pão e um filme para a máquina fotográfica. Como na vila não havia o filme, foram até a Colônia de Férias do SESC (uns 6 quilômetros pela praia). Ao entrarem na colônia (que não era cercada), perguntaram a uma moça, que estava atrás de um dos chalés lavando roupa no tanque, onde ficava a lojinha da colônia; foram até lá, compraram o filme e voltaram para o acampamento na Prainha. Lá chegando, contaram aos companheiros o que tinham feito e disseram que a colônia estava cheia de moças bonitas... Todos ficaram muito excitados, e resolveram levantar acampamento e irem para a Bertioga. Como estava chovendo já há alguns dias, resolveram pedir ao Seu Elias Nehme ¾ dono do armazém da vila e da Pensão Paulista, onde os Burke costumavam se hospedar nas férias de julho ¾ para deixá-los acampar dentro de um barracão fechado que ficava ao lado da pensão, no que foram prontamente atendidos.
Ficando sabendo que à noite havia bailinhos na colônia de férias do Sesc, para lá se dirigiam às tardinhas e dançavam até o fim dos bailes (às 22:00 hs., quando os geradores de eletricidade da colônia eram desligados). Logo na primeira noite, Tommy tirou para dançar a moça a quem havia pedido informação naquela manhã, e ficou sabendo que ela se chamava Maria Therezinha, e que estava passando uns dias com sua família na colônia. Conversa vai, conversa vem, foram logo se engraçando, e se tornaram um par constante nas próximas noites e passaram a namorar. Quando Maria Therezinha e sua família voltaram para São Paulo, Tommy os acompanhou. Alguns dias depois ficaram noivos. Esta foto foi tirada na barca em que voltavam de Bertioga para Santos. No ano seguinte, voltaram para passar uma semana na colônia onde haviam se conhecido.
1950 - Foto de John com seu filho Pedro Paulo, em Bertioga, durante um passeio na colônia de férias do SESC, onde os noivos Tommy e Maria passavam férias com a família dela.
Em 1950, não desejando mais continuar seus estudos, Eddy foi viver no sítio em Mogi das Cruzes, para começar uma granja de galinhas. Em 1951, Tommy foi para o Rio de Janeiro (Ceropédica, na baixada fluminense), para estudar Agronomia na ENA (Escola Nacional de Agronomia, da Universidade Rural), e Teta e Passos se mudaram para a casa comprada por John e Cecília, na Av. Odila (Planalto Paulista).
Teta e Passos mudaram-se em 1955 para a Rua João Julião (Paraíso); depois, em 1970, para o apartamento que compraram na Alameda Franca, onde viveram até 1991. Durante esse período, Passos, que vinha sofrendo de uma doença degenerativa dos músculos e articulações (esclerose múltipla), foi piorando. Em 1992, mudaram-se para uma casa alugada na cidade de São Carlos – SP, para que Passos pudesse ter mais liberdade de movimento. Lá ficaram até 1997, quando se mudaram para um apartamento na Av. Presidente Wilson, na cidade de Santos (Praia José Menino), onde Passos veio falecer em 2001. Teta continua vivendo lá, e atualmente em companhia de Tommy e Maria.
Curiosidades e Historinhas

Em 1941, quando os Burke foram morar em São Paulo, a cidade tinha apenas cerca de um milhão de habitantes. O principal meio de transporte coletivo, além dos trens de subúrbio, eram os bondes da "Santo Amaro Tramway" e da Light. Todo comércio varejista mais importante estava localizado no centro, especialmente na área entre a Praça da Sé, Largo São Francisco, Praça do Patriarca e Largo São Bento (especialmente as ruas São Bento, Direita e Líbero Badaró). A grande casa comercial da cidade era a Mappin Stores, na Rua São Bento, entre as ruas da Quitanda e Direita, com frente para a Praça do Patriarca (mais tarde, a Mappin mudou-se para o grande edifício em frente do Teatro Municipal). Nos bairros, só havia armazéns de secos e molhados, e empórios; não existiam padarias como as de hoje. Havia pouquíssimos prédios com mais de cinco andares, e o Edifício Martinelli, com 25 andares, no início da Av. São João, era o orgulho da cidade. Não havia terminal rodoviário, e os pontos terminais dos ônibus intermunicipais e interestaduais partiam das respectivas agências de venda de passagem.
Mr. Burke, D. Emma, Tommy e Eddy costumavam ir com freqüência ao sítio em Mogi das Cruzes. No começo, viajavam pelo trem de subúrbio da Central do Brasil, que partia da Estação do Norte. Havia poucos trens por dia, e viviam sempre superlotados, atrasavam até horas e os desastres eram freqüentes. A estação de Mogi ficava ao lado da praça central da cidade. Depois da Segunda Grande Guerra, a Central do Brasil se tornou parte da Rede Ferroviária Federal, e a Estação do Norte recebeu o nome de Estação Roosevelt, em homenagem ao falecido presidente dos Estados Unidos durante a Segunda Grande Guerra. Depois, quando foi criada uma linha de micro-ônibus entre São Paulo e Mogi (que funcionava no sistema "lotação"), os Burke passaram a usá-la. A agência ficava ao lado da Estação do Norte. O trajeto era pela Av. Celso Garcia até a igreja da Penha, seguindo pela antiga estrada Rio-São Paulo, passando por São Miguel Paulista (onde terminava o asfalto); depois, sempre por terra, buracos, barro e poeira, passava por Ferraz de Vasconcelos, Calmon Viana, Poá, Suzano e Braz Cubas, onde começava o trecho asfaltado que atravessava a cidade de Mogi. Os motoristas eram o "Madureira" e Seu Bonafé, antes choferes de caminhão.
Ao chegarem em Mogi, os Burke iam até o sítio de táxi, combinando dia e hora para o táxi apanhá-los para o retorno. Quando acontecia deles ficarem no sítio várias semanas (nas férias), iam a pé até a cidade nos domingos, para assistirem missa e fazerem compras no Mercado Municipal, tomando o táxi para voltarem ao sítio. Na foto, o ponto de táxi em frente da estação de Mogi, da Estrada de Ferro Central do Brasil. Ao fundo aparece o coreto do jardim da cidade.
Durante os anos da Segunda Grande Guerra, os táxis, que tinham direito a adquirir apenas uma cota muito reduzida de gasolina por semana (todo combustível era importado), acabavam ficando sem gasolina suficiente para levar os Burke até o sítio. Alguns motoristas, que haviam se tornados amigos da família, compravam alguns litros de álcool comum no armazém, e os colocavam no tanque, junto com o restinho de gasolina. O motor, que não era feito para usar tal mistura, custava muito para pegar, funcionava muito mal, "tossia queném tuberculoso com tosse comprida", e morria a toda hora. Quando isso acontecia, era preciso drenar a água acumulada na cuba do carburador.
Durante o período de falta de gasolina e óleo diesel, muitos proprietários de automóveis (e até alguns de ônibus e caminhões), adaptaram os motores para funcionar com "gasogênio". O aparelho gerava o gás combustível (pobre) numa câmara que queimava carvão ou mesmo lenha de onde passava para dois grandes cilindros verticais, e dali seguia para o motor. O conjunto era instalado do lado externo, preso atrás, na frente ou sobre o veículo. Para ligar o motor, era preciso acender o carvão (ou a lenha) e esperar até que houvesse gás suficiente nos cilindros. De tempos em tempos, era preciso parar para reabastecer o aparelho, o que obrigava o motorista a levar no veículo sempre um estoque de carvão ou lenha. Não era nada prático nem limpo, mas "quebrava o galho". Na foto do caminhão Peujot, vê-se o motorista abastecendo a fornalha com lenha, e, sobre a carroceria, o cilindro de armazenamento do gás. Este automóvel Ford levava o conjunto de gasogênio preso atrás do porta-malas.
Em Mogi das Cruzes, na esquina do Largo do Rosário com a R. Dr. Wertheimer, havia uma loja "tem de tudo", cuja proprietária (imensa) vendia todo tipo de coisas usadas (e algumas novas), especialmente ferragens, ferramentas, fogões, fogareiros, lampiões, utensílios de cozinha, armas e munições. Os Burke eram simplesmente fascinados pela loja, e costumavam comprar muita coisa ali. Um dia, Tommy e Eddy, ficaram encantados com uma velha carabina Winchester calibre 22 de repetição, e perguntaram à proprietária se ela (a arma) ainda funcionava bem. A espantosa dona da loja não disse nada, apanhou uma bala, meteu-a na carabina, apontou para um velho penico que estava pendurado no fundo da loja e disparou, atravessando o pobre penico bem no meio e levantando uma nuvem de poeira da parede de taipa onde a bala foi se alojar. Todos ficaram impressionados e convencidos, mas Mr. Burke simplesmente disse que o melhor seria comprarem uma arma mais moderna, o que causou uma enorme decepção em Tommy e Eddy e, certamente, também na decidida vendedora...
Algum tempo depois, Mr. Burke comprou uma carabina Marlyn (americana), calibre 22 (de um tiro), em São Paulo (Casa Gaúcho - R. Líbero Badaró), e a deu como presente de natal para Tommy e Eddy. John (Jr.) tinha uma espingarda Floubert 9mm (belga), que usava cartuchos com chumbinhos e também balas curtas (uma esfera de chumbo). É impossível fazer uma estimativa da quantidade de tiros que a Marlyn deu durante sua vida útil. Tommy e Eddy gastavam todas as suas mesadas e mais um pouco comprando caixas e mais caixas de munição, que era gasta caçando sanhaços, sabiás, rolinhas, pombas do mato, gaviões, saracuras, lagartos e gambás.
Adoravam, também praticar tiro ao alvo em garrafas e alvos pregados numa grande paineira ao lado do caminho para a nascente. A pobre paineira acabou ficando barriguda, "inchada, de tanto comer chumbo" (certamente algumas dezenas de quilos...). Mais tarde, quando Tommy e Eddy já estavam casados, o poder de fogo dos Burke foi aumentando gradativamente, com Eddy comprando uma cartucheira Rossi cal. 36. Tommy comprau um revolver Taurus cal. 32 e uma carabina BRNO (checa) cal. 22, com pente de 5 balas (na foto), armas que ele entregou à Polícia Federal em 2004.
John, que estudava engenharia na Escola Politécnica, numa das férias, combinou com o colega e amigo Paulo Rapyo irem a pé do sítio em Mogi das Cruzes até a praia da Bertioga. Pegaram barraca, roupas, alguma comida e a espigardinha Flobert, colocaram tudo sobre o cavalo Ghosty, e partiram, puxando o cavalo. Seguiram pela estrada até Capela do Ribeirão, e dali tomaram uma trilha pela mata atlântica, acampando pelo caminho, até chegarem a uma casinha no alto da serra, onde deixaram o Ghosty num pastinho, aos cuidados do morador. Na trilha, haviam cruzado com uma onça pintada, que passou tranqüilamente a uns cinqüenta metros deles. Desceram até o pé da serra pela trilha que acompanhava os canos de água da usina de Itatinga ¾ antiga fornecedora de energia elétrica para a Companhia Docas de Santos ¾; atravessaram o Rio Tapanhaú e chegaram até a praia da Bertioga. Ficaram lá alguns dias, e fizeram o percurso de volta até o sítio em Mogi, muito empolgados e orgulhosos com o que haviam feito.
Tommy e Eddy tinham como hobby colecionar selos, cultivar orquídeas, montar rádios e vitrolas (fizeram um curso de "radio técnico" por correspondência), consertar eletrodomésticos e revelar fotografias. Sua oficina-laboratório fotográfico ficava no porão da casa. Descobriram até uma maneira de tirar fotografias sem o uso de filme: colocavam papel fotográfico no lugar do filme na máquina "caixote", batiam a fotografia, revelavam o "negativo" e depois tiravam, por transparência forçada, a cópia positiva. Esta é uma das fotos tiradas por esse sistema. Ao lado, uma máquina Kodac do tipo "caixote", semelhante à usada pelos Burke em suas primeiras fotos no Brasil, e que usaram até por volta de 1950. Com ela, Tommy e Eddy fizeram suas experiências fotográficas sem o uso de filme.
Eles também gostavam de comprar e ouvir discos de música clássica, algo meio estranho para jovens da sua idade. Andavam bastante de bicicleta, inclusive indo até às matas perto de Parelheiros e Itapecerica da Serra, para coletarem orquídeas nativas.
Enquanto cursavam os dois anos do "científico", Tommy e Eddy trabalharam meio período no escritório de engenharia do irmão John, na Praça da Bandeira. Faziam os desenhos, em papel vegetal, das plantas de concreto armado dos prédios que John e colegas projetavam e calculavam. Ganhavam por produção (metros quadrados de plantas desenhadas). Eddy também ajudou a fazer alguns levantamentos topográficos (trabalho de campo e de escritório) durante esse tempo. Depois que se mudaram para Mogi das Cruzes (ver próximo capítulo), Tommy trabalhou algum tempo no escritório de engenharia do seu irmão John e Miguel Gemma, voltando a fazer plantas de concreto armado. Ali aprendeu também a fazer os cálculos estruturais, chegando, inclusive, a calcular toda a estrutura de um prédio de quinze andares, que acabou sendo construído com apenas dez andares porque faltou dinheiro aos condôminos, um dos quais era o próprio calculista...
Quando Tommy e Eddy cursavam o 1o ano do "científico" no Colégio São Bento (moravam no Brooklyn), eles combinaram com o amigo Milton (filho do Dr. Milton Veras, médico da Cia Perus), fazerem uma viagem de bicicleta de São Paulo até Bebedouro, onde vivia um tio do Milton, proprietário de uma fazenda de café e gado. O programa era saírem os três nas férias, em janeiro, mas Eddy "ficou em segunda época" numa matéria, e Mr. Burke e D. Emma não permitiram que ele fosse sem antes ter feito o exame e passado de ano (naquele tempo não havia "dependência"). Ficou combinado que se ele fosse aprovado, ele iria de trem até Bebedouro, levando sua bicicleta, para encontra-se com Tommy e Milton, e voltariam todos juntos para São Paulo. Na foto, Tommy e Milton estudam o percurso da viagem programada.
No primeiro dia da viagem, Tommy e Milton saíram de São Paulo e foram até Gato Preto pelo leito de terra que estava sendo preparado para a construção da Via Anhangüera. Dali foram no "Eme" (o trem de um só vagão) até Água Fria. No dia seguinte voltaram a Gato Preto, e partiram rumo a Bebedouro, sempre por estradas de terra. Cada um levava, numa mochila no bagageiro da bicicleta, uma troca de roupas, aparelho de barbear, sabonete, escova e pasta de dente, um cantil com água, e algumas bolachas. Não levavam barraca nem dinheiro, pois pretendiam conseguir "na conversa" pouso e refeições pelo caminho.
Naquele mesmo dia chegaram à Jundiaí, procuraram a casa do Traldi (colega do John na Escola Politécnica), cujo pai era dono de uma cantina produtora de vinho, onde foram muito bem tratados, inclusive com um belo almoço regado a vinho da casa. À tarde, tomaram a estrada para Jarinu, onde conseguiram um lanche na casa de uma irmã solteirona do primeiro farmacêutico de Água Fria, que não ousou convidá-los para dormirem em sua casa. Tiveram que passar a noite dormindo numa cama e num colchão no chão, dentro de uma cela da cadeia da cidade (porta destrancada), gentilmente cedidos pelo Delegado. No meio da noite, Tommy foi acordado com os gritos desesperados do Milton. Quando Tommy perguntou o que estava acontecendo, Milton, meio acordado e ofegante, disse que o preso que dormia na sela ao lado tinha enfiado um fio elétrico através das grades e estava lhe dando choques... Não foi fácil acalmá-lo e convencê-lo de que tudo não passava de um grande pesadelo... Mesmo assim, ele fez questão de ir dormir no colchão afastado da grade. No dia seguinte, foram até Atibaia, onde dormiram noutra cadeia, sem grandes sustos. Depois passaram por Bragança Paulista, onde vivia um parente do Milton, que os hospedou em sua casa e na hora de partir, deu-lhes algum dinheiro "para o caso de virem a necessitar" (dinheiro que só foi gasto comprando sorvete pelo caminho até Bebedouro).
De Bragança Paulista, seguiram até Campinas, onde conseguiram o jantar e pouso perto da estação ferroviária, na casa de uma família negra, amiga de um ajudante direto de Mr. Burke em Água Fria, o Caramigo, famoso pela sua gagueira. De lá, foram até Conchal e depois até Santa Rita do Passa Quatro, mas ao passarem por um posto da Polícia Rodoviária Estadual bem perto de Porto Ferreira, foram detidos, porque as bicicletas não estavam licenciadas (o que era obrigatório). Os guardas se dispunham a deixá-los seguir, mas as bicicletas ficariam retidas, até que as multas fossem pagas e as bicicletas devidamente licenciadas e emplacadas. Tommy e Milton tentaram de todas as formas convencer os guardas a deixarem "os pobres estudantes, que estavam em uma viagem de estudos pelo interior de São Paulo" a levarem as bicicletas, mas sem sucesso. Eles, então, pediram licença para telefonar dali ao Prefeito, no que foram atendidos. Explicaram sua situação, e o prefeito disse para eles aguardarem um pouco, e que dentro de uma hora iria pessoalmente até lá para resolver o caso. Quando os guardas souberam da intenção do prefeito, ficaram preocupados, e foram logo dizendo que os dois não precisavam esperar por ele, e que podiam pegar suas bicicletas e seguir viagem. Tommy e Milton agradeceram aos guardas, disseram até logo, e resolveram ir até a Prefeitura, para agradecer ao prefeito pela atenção e dizer que o caso já estava resolvido. O prefeito, muito amavelmente, convidou-os para almoçar com ele em sua residência, que ficava numa chácara do outro lado do Rio Mogi Guaçú. Levou-os até lá em seu carro, e "os pobres estudantes" tiveram o melhor almoço de toda a viagem. De barriga cheia, seguiram até Santa Rita do Passa Quatro, onde o prefeito os hospedou no melhor hotel da cidade, por conta da Prefeitura, e providenciou para que fosse feita uma reportagem pelo jornal da cidade sobre "a heróica aventura dos estudantes de engenharia" (publicada no dia seguinte).
Um fim de tarde numa estrada de terra do interior de São Paulo. Tommy segura as duas bicicletas com as quais viajavam, enquanto Milton, de sobre o barranco, tira a foto (sua sombra aparece bem no lado esquerdo).
De Santa Rita, seguiram para Ribeirão Preto, onde o Prefeito os recebeu em seu gabinete, mas simplesmente disse que não poderia ajudá-los em nada. Decepcionados, partiram, então, rumo a Sertãozinho, conseguindo comida e um cantinho para dormir com um sitiante na beira da estrada. No dia seguinte, chegaram a Bebedouro, onde ficaram hospedados na casa do tio do Milton. Conseguiram uma troca de roupas emprestada, para vestir enquanto a Tia tratava de lavar descentemente a roupa encardida (dá pra imaginar: estrada de terra vermelha, verão, poeira, barro e suor...) que tinham usado na viagem, e que lavavam rapidinho nos córregos pelo caminho, e penduravam para secar nos arbustos, enquanto tomavam seu banho. De Bebedouro, iam diariamente até a fazenda (ao lado da estação Botafogo), onde passavam o dia nadando, pescando e comendo mangas colhidas na hora.
Nesta foto, de sobre uma ponte, Tommy contempla o rio Moji Guaçu. Na "garupa" de sua bicicleta aparece toda a bagagem levada na viagem.
Depois de alguns dias em Bebedouro, pensando em tudo que tinham passado para chegarem até lá, resolveram que não teriam coragem de repetir a dose voltando de bicicleta até São Paulo. A coisa seria ainda bem mais complicada com a companhia do Eddy (que deveria vir de trem com a sua bicicleta), inclusive porque não poderiam passar outra vez pelos mesmos lugares pedindo comida e alojamento. Decidiram, então, voltar de trem, despachando as bicicletas. Telefonaram ao Eddy comunicando a decisão e dizendo que, infelizmente, desta vez ele teria que ficar "chupando o dedo". O seu consolo foi ouvir a história das dificuldades pelas quais os dois aventureiros haviam passado, e por ter sido aprovado no exame e promovido para o "segundo científico".

6 – VOLTANDO A VIVER NO CAMPO E OS ÚLTIMOS TEMPOS DOS PIONEIROS (1950-1990)

O Sítio, em Mogi das Cruzes

O sítio, comprado em 1941, que Mr. Burke e D. Emma haviam batizado de "Sétimo Céu", tinha de início aproximadamente cinco alqueires, depois ganhou mais um alqueire (o "sítio do Papai Noel", adquirido do velho de barbas longas, Seu Ernesto). Ficava a cerca de cinco quilômetros do centro da cidade de Mogi das Cruzes, no bairro de São João do Caputera, ao lado da "Estrada da Pedreira", e distante 800m da estrada de terra que ligava Mogi à vila de Capela do Ribeirão. O sítio, em pouco tempo, veio a ser conhecido nas redondezas como "sítio dos americanos", mas os Burke simplesmente se referiam a ele como "o sítio".
Por volta de 1946, a Cia Light and Power desapropriou, litigiosamente, uma faixa com 110 metros de largura, para construção de uma linha de transmissão de alta voltagem (230.000 volts), cortando diagonalmente o sítio em duas partes. A faixa sob a linha podia continuar a ser explorada pelos Burke com plantações de baixo porte, sendo proibidas quaisquer edificações. A ironia desse fato foi a desapropriação ter sido feita, muito a contragosto de Mr. Burke, justamente para a passagem de uma linha de transmissão de energia gerada na usina de Cubatão (Henry Borden) da Light, que ele havia ajudado a construir cerca de vinte anos antes...
O sítio ficava na cabeceira de um pequeno vale, que descia até o Rio Tietê, num ponto pouco acima de Mogi. À sua direita, ficava o "morro da pedreira", de onde se extraia grande quantidade de "macacos" (paralelepípedos) e mourões de granito, cortados a mão com martelo e talhadeira. Tinha duas pequenas nascentes, uma perto do pé da pedreira, que dava origem ao pequeno córrego afluente do Tietê, e outra no pé do capão de mato, do lado esquerdo do sítio, que fornecia a água para beber e cozinhar. Mais ou menos no seu centro, havia um pequeno lago, quase totalmente todo tomado por taboa.
A velha casa do sítio era de alvenaria e coberta com telhas "francesas". O forro era de madeira e o assoalho de taboas de peroba. No início, consistia apenas de uma sala, que dava acesso direto a três quartos e uma cozinha (com fogão a lenha). Não tinha banheiro; havia apenas, do lado de fora, uma "casinha" de madeira, sobre uma fossa negra, sobre a qual havia um caixote de madeira sem fundo e com um buraco na parte de cima, servindo como "vaso sanitário". Os banhos eram tomados "de bacia", no meio da cozinha. Afastados 6m da casa, havia os restos de uma grossa parede de taipa, que restara "dos tempos dos escravos".
Havia também no sítio uma pequena casa de empregado (zelador), muito rústica, com chão de terra e coberta com telhas "coloniais" primitivas. Ela tinha uma cozinha, sala e três quartos, e do lado de fora a "casinha".
O sítio não tinha eletricidade nem água encanada. A iluminação era feita com lamparinas, lampiões e velas, e o ferro de passar roupa era aquecido com brasas colocadas no seu interior. A água para uso geral e banho era tirada de um poço, distante vinte metros da casa, de onde era carregada em latas de vinte litros. Ao lado do poço havia um tanque para lavar roupa. O poço e o tanque eram cobertos por um pequeno telhado. A água para beber era colhida na nascente, no pé da mata, distante uns 150m da casa. Como não havia geladeira, a manteiga era conservada "refrigerada" dentro da lata enterrada na areia debaixo da "biquinha".
Ao redor das casas, havia, dispersas, enormes jabuticabeiras nativas, que tinham sido deixadas no lugar quando a floresta primitiva foi derrubada "no tempo dos escravos". Uma grande parte do terreno servia de pasto, onde foram colocados os cavalos "Baio" e "Ghosty", trazidos caminhando desde Perus. Havia também algumas bananeiras e velhas laranjeiras, e o caseiro plantava um pouco de milho, feijão e arroz, e criava algumas galinhas. Logo depois que os Burke compraram o sítio, eles empreitaram o plantio de aproximadamente um alqueire de eucalipto, que anos depois viria a produzir postes e lenha, em vários cortes sucessivos.
Pouco depois de terem comprado o sítio, Mr. Burke e D. Emma haviam feito algumas melhorias na casa sede, onde costumavam passar fins de semana e férias. Construíram uma nova cozinha (com fogão a querosene e uma pia) e transformaram a antiga cozinha em um corredor e um banheiro (com banheira, chuveiro, pia, privada e aquecedor Dako a carvão). Do lado de fora, construíram uma fossa céptica e colocaram uma caixa d'água elevada, ligada ao banheiro e à cozinha. No poço, colocaram uma bomba manual, ligada por encanamento à caixa d’água.
Mr. Burke e D. Emma, antes de se mudarem para o sítio, já haviam feito algumas modificações na casa. Construíram mais um dormitório, anexo ao que vinham ocupando, ficando este como "dressing room" (sala de vestir) do "apartamento" do casal. Fizeram uma lareira na sala e, ao longo do lado da casa que dava vista para o vale, construíram uma varanda, com 1,5m de largura. Com isso, a antiga frente da casa passou a ser os fundos, e a frente passou a ser o lado da varanda. Além dessas melhorias, fizeram um barracão, aproveitando a antiga parede de taipa e puxando um telhado de zinco de 5m de largura por 15m de comprimento, até a porta externa da nova cozinha. O barracão veio a se tornar mais tarde o local mais importante das atividades dos moradores do sítio, funcionando como lugar para secar roupa, fazer churrasco, guardar e classificar ovos, garagem para carro e trator, oficina, depósito de combustível e muitas outras coisas. Na foto, ao fundo, vê-se o morro da pedreira de granito.
Quando em 1951 Mr. Burke, D. Emma, Tommy e Eddy foram viver no sítio, para iniciarem uma granja de galinhas, eles fizeram mais algumas melhorias importantes no sistema de abastecimento de água. Furam um novo poço bem ao lado da lagoa, onde instalaram uma moto-bomba (motor a gasolina), ligando a bomba a uma caixa d’água, erguida perto da entrada do sítio, para abastecer os galinheiros que estavam sendo construídos, e também a casa sede. Alguns anos depois, quando novos galinheiros e três novas casas (as de Eddy, Tommy e John) foram construídos, foi feito um novo poço, logo abaixo da nascente, no pé da mata, onde foi instalado um novo conjunto moto-bomba (motor a diesel), ligado a uma nova caixa d'água, construída no ponto mais alto do sítio, de onde a água descia para servir as quatro casas e a todos os galinheiros. Quando, finalmente, em 1957, os Burke conseguiram puxar por sua conta uma linha de força até o sítio, a velha bomba foi substituída por uma moto-bomba elétrica. Com a eletricidade, além das lâmpadas, foram chegando ao sítio os eletrodomésticos, como ferro de passar, rádio, liquidificador, aquecedor e TV (branco e preto) etc.
De 1951 a 1954, Tommy passava os períodos letivos na ENA (no Rio de Janeiro) e voltava para ajudar o Eddy durante as férias. Em algumas ocasiões ele trouxe os colegas amigos: "Teco" (Carlos Ortega Iriarte, guatemalteco), "Panchito" (Luiz Palazuelos, boliviano) e Dimas Waltrick (de Lajes-SC).
Em 1954, Tommy terminou o curso de Agronomia e no dia 16/12/1954 se casou com Maria Therezinha, que conhecera em Bertioga e de quem era noivo desde 1949. O novo casal ficou morando na "casa do sítio", ocupando um dos quartos e construindo mais um anexo. Em 08/05/1955, Eddy se casou com Elza (filha de Jacob Jorge e D. Rachid) e eles ampliaram o quarto que ele vinha ocupando. Com isso, na "casa do sítio", já bastante modificada, passaram a morar os três casais.
Em 1954, Tommy e Maria adicionaram mais um quarto à "casa do sítio", formando seu "apartamento". Nesta foto, eles aparecem na janela da parte antiga do seu "apart".
Em 1955, Eddy e Elza também fizeram o seu "apart" no canto sudeste da "casa do sítio". Ela passou, assim, a ter 3 "apartamentos", sala com lareira, banheiro, cozinha, terraço, galpão e garagem.Esta foto da casa do sítio foi tirada do "outro lado" da lagoa. No canto esquerdo está o "apart" construído por Eddy e Elza. No centro está a sala da casa e à direita o "apart" de Mr. e Mrs. Burke.
Em 1956, com uma ajuda financeira do sogro, Eddy e Elsa construíram perto do canto noroeste do sítio sua casa (sala, dois dormitórios, banheiro, cozinha e varanda), para onde se mudaram. Na foto da esquerda (de 1964), em frente da varanda da casa deles, estão Elza Maria, Edinho, Carlinhos e Paulinho (no colo do Edinho).











Em 1956, Tommy recebeu uma herança de seu tio-avô e padrinho (por procuração), Thomas Daily Joseph Burke, que havia falecido nos Estados Unidos em 1955, tendo antes colocado no seu testamento aquele seu desejo (um lote de ações do Chase Manhatan Bank, que foram depois vendidas por cinco mil dólares). Tommy e Maria aproveitaram o dinheiro para construírem sua própria casa (duas salas, dois dormitórios, cozinha, banheiro, lareira e varanda), perto da casa do Eddy.
Em 1957, John e Cecília também construíram sua casa no sítio, entre as de Tommy e de Eddy (dois dormitórios, banheiro, cozinha, sala, varanda, garagem). Mais tarde, acrescentaram dependências de empregada. Nas fotos, tiradas em 1975 e 1978, John aparece de bigode, que usou durante algum tempo, e Cecília sendo abraçada por sua neta Patrícia.
À esquerda, estão John (Jr.) e Pedro Paulo. (foto de 1959)
À direita, foto de João Passos tirada em 1959, quando ele passava férias com os Burke no sítio. Ao fundo aparece o primeiro conjunto de galinheiros construído na granja.
Em agosto de 1957, Frances Hennessy e Anna Colligan, as grande amigas de juventude de D. Emma, vieram novamente ao Brasil para visitar os Burke. Frances Hennesy voltou ainda mais duas vezes, em 1961 e em 1968.
Foto tirada em 1959, quando "Uncle Carl" (Charles Burke, irmão de Mr. Burke) com sua esposa Frances, vieram dos EUA passar algum tempo com a família no sítio. Trouxeram consigo várias garrafas de whisky, que foram rapidamente consumidas pelos próprios visitantes, com alguma ajuda de Mr. Burke...
Em 1968, "Uncle Arthur" (Charles Aubry) e sua mulher Florence Burke (irmã de Mr. Burke), também vieram passar uns tempos com os Burke em Mogi. Ele trouxe consigo seu inseparável estojo de tacos de golfe. Esperava jogar grandes partidas no sítio... e acabou tendo que se contentar em bater umas bolinhas no gramado ao lado do barracão...

A Granja

Quando os Burke começaram a pensar em explorar uma granja de galinhas, só havia no Brasil duas raças especializadas na produção de ovos: a Leghorn e a New Hampshire. A Leghorn era totalmente branca, muito leve e produzia ovos de casca branca. A New Hampshire tinha coloração avermelhada, era mais pesada e produzia ovos "vermelhos", que tinham melhor preço no mercado. A escolha dos Burke foi pela New Hampshire, talvez influenciados pelo fato de terem criado em Água Fria galinhas da raça "Rodes" vermelhas (Road Island Red), e da qual a New Hampshire tinha se originado, e por preferirem ovos de casca avermelhada. O sistema de criação escolhido foi o de semi-confinamento.
Os pintos de um dia (só fêmeas), eram comprados da Granja Santo Onofre, em São Paulo. Eram criados durante os primeiros dias em "baterias" metálicas, aquecidas por lamparinas a querosene, dentro do quarto ao lado da "fábrica de ração". Dali, depois de vacinados contra "bouba" e doença de New Castle, os pintos passavam para o "pinteiro", um abrigo de alvenaria, estreito e comprido, com duas alas, e piso telado, onde ficavam até se tornarem franguinhas; depois iam para os galinheiros de postura.
Os galinheiros foram construídos em alvenaria, piso de cimento liso e cobertos com "Brasilit" (chapas onduladas de cimento-amianto). O piso era forrado com palha de capim gordura, produzida no próprio sítio. No centro de cada galinheiro havia um tablado, sobre o qual era colocado, horizontalmente, o "poleiro". Encostados na parede do fundo ficavam os ninhos de madeira, e na frente o bebedouro (um cocho de cimento). Distribuídos pelo chão, ficavam os comedouros (cochos de madeira, sobre os quais havia uma madeira roliça, que podia girar livremente, evitando que as galinhas entrassem no comedouro ou se empoleirassem sobre ele). Havia, também, um comedouro com cascas de ostras quebradas. Cada galinheiro tinha ao seu redor uma área cercada com "tela de galinheiro" e plantada com capim kikuio (originário da África), à qual as galinhas tinham livre acesso durante o dia, quando não estava chovendo. Na primeira foto estão Eddy (com uma cesta de ovos), Joãozinho Passos e Teco (Carlos Ortega Iriarte), guatelmateco, colega do Tommy na Escola Nacional de Agronomia. Ao todo, foram construídos 6 desses galinheiros (2 conjuntos de 3 galinheiros). Nesta foto aparece o primeiro conjunto construído no sítio. Na frente vê-se o pátio cercado, ao qual as galinhas tinham acesso nos dias sem chuva.
Com o passar do tempo, verificou-se que os galinheiros apresentavam alguns problemas: a cama de palha ficava muito molhada e emplastrada; as galinhas acabaram completamente com o kikuio e quando chovia a área virava um "chiqueiro", trazendo sérios problemas para a saúde das aves (especialmente verminoses). O sistema foi, então, mudado para o de confinamento total, sendo a cama substituída por um ripado removível (para permitir a retirada do esterco), colocado 30 cm acima do piso. O telhado de cimento amianto causava um calor excessivo dentro dos galinheiros, especialmente durante os dias mais quentes, o que foi remediado pela abertura de estreitas janelas ao longo da parede do fundo, permitindo uma melhor circulação do ar. Alguns anos depois, foi construído um grande galinheiro (o último), com telhado bem mais alto e com telhas de barro "francesas", e o ripado colocado numa altura que permitia retirar facilmente o esterco sem precisar remover o ripado.
A ração para alimentação das aves era preparada no próprio sítio, com os ingredientes adquiridos nos armazéns especializados (Sakoda e Shibata), em Mogi. A "fábrica de ração" foi montada na velha casa desocupada do caseiro. Consistia de um "misturador", uma enorme banheira de madeira, onde todos os ingredientes (farelo e farelinho de trigo, "refinazil", farinha de soja, fubá, quirera, farinha de carne, farinha de osso, farinha de ostra, alfafa em pó, mistura de sais minerais e vitaminas, e terramicina), devidamente pesados, eram jogados e misturados com uma enxada. Ao lado do misturador, ficava um enorme caixotão de madeira, com quatro repartições, com tampas, onde as diversas rações prontas (para pintos, frangas e poedeiras) eram guardadas. Dali, a ração era carregada, em baldes de 20 litros, até os galinheiros, várias vezes por dia. Alem da ração, as aves recebiam uma certa quantidade de folhas de couve gigante, plantada numa horta perto da lagoa. Alguns anos mais tarde, quando surgiram no mercado rações já prontas, os Burke aderiram ao novo sistema, passando a comprar ração granulada ("peletizada").
Os ovos eram retirados dos ninhos todas as tardes e levados até o barracão, onde eram classificados por tamanho, colocando-os num classificador manual de madeira (conjunto articulado de tábuas sobrepostas, com orifícios de diferentes diâmetros). Depois de classificados, os ovos eram colocados em caixas de madeira, contendo várias "gavetas" providas de alças de arame para manter os ovos no lugar. Dali, as caixas de ovos eram levadas ao armazém em Mogi que fornecia os ingredientes para a ração, para serem comercializados.
A postura de cada lote de galinhas era controlada por meio de fichas, onde eram registrados: data de aquisição dos pintos; procedência; data em que foi botado o primeiro ovo, o número de ovos postos em cada mês, o total de dias desde o primeiro ovo, e o número total de ovos produzidos nesse período. Ao lado está a ficha do primeiro lote (experimental) da granja, de 6 de julho de 1951, com o primeiro ovo posto no dia 01 de janeiro de 1952. As fichas de acompanhamento dos lotes eram redigidas em inglês, por D. Emma.
Logo, os Burke perceberam que o preço pago pelos ovos oscilava muito em função da época do ano. Nos períodos de "muda" (troca das penas, entre fevereiro e abril) a postura caia e os preços subiam bastante, enquanto que na época de maior postura (outono, inverno e primavera) os preços despencavam, muitas vezes não cobrindo os custos de produção. Resolveram, então, passar a produzir ovos para incubar, que alcançavam um preço bem melhor durante o ano todo.
Fizeram um contrato com a Incubadora Saito, de Mogi das Cruzes, para o fornecimento de ovos de galinhas selecionadas de alta postura. Compraram alguns galos (1 galo para cada 8 galinhas), e transformaram todos os antigos ninhos em "ninhos alçapão", com uma portinhola, que desarmava quando a galinha entrava para botar, ficando ali presa até ser solta.. Todas as galinhas eram numeradas, pela colocação de um anel de alumínio numerado numa das pernas. Ao lado de cada conjunto de ninhos havia uma prancheta, segurando uma ficha com 33 colunas. Na primeira coluna constavam os números de todas as galinhas do galinheiro, e nas demais colunas (uma para cada dia do mês) eram feitos risquinhos sempre que a galinha punha um ovo, o que era constatado ao se pegar a galinha para soltá-la do ninho. No fim do mês, o total de ovos postos por cada galinha era anotado na última coluna, e os dados eram transferidos para fichas individuais. Assim, cada galinha tinha sua história de postura perfeitamente registrada. As boas poedeiras eram mantidas como reprodutoras por dois anos, e aquelas que não atingiam um índice mínimo mensal de 22 ovos (240 ovos por ano) eram imediatamente vendidas para o abate. Somente os ovos dentro do padrão (entre 53 e 60g) eram destinados à incubação, sendo os maiores e menores vendidos para o consumo normal, e os muito grandes (com duas gemas) ficavam para serem consumidos no sítio.
Outra exigência para a produção de ovos para incubação era um rigoroso controle sanitário das aves, especialmente em relação à neurolinfomatose, doença que afeta o sistema nervoso e linfático, e acaba matando a ave. Um dos sintomas iniciais da doença (nem sempre presente) é uma deformidade da íris do olho, mas o único exame seguro é através do exame de sangue, que pode ser feito de uma forma muito rápida, colhendo-se uma gota de sangue numa lâmina de vidro e pingando sobre ela uma gota do antígeno específico, e observando o padrão de coagulação (visível a olho nu). Inicialmente, esse controle era feito por funcionários do Instituto Biológico de São Paulo, que iam até a granja, mas isso se revelou muito complicado e incerto devido à distância e à insuficiência de pessoal. Eddy e Tommy resolveram, então, passar a fazer eles mesmos os exames, inicialmente com antígeno conseguido no Instituto Manguinhos, no Rio de Janeiro, e depois no Instituto Biológico, em São Paulo. O exame causava uma enorme "comoção" no galinheiro, pois cada ave precisava ser apanhada, examinada e testada, e em seguida separada das demais (colocadas em grandes engradados). Isso ocasionava muito stress nas galinhas, o que se refletia durante os dias seguintes por uma acentuada queda na postura, causando muito prejuízo.
Em resumo, toda a complicação e os custos adicionais para a produção de ovos de incubação, acabou se revelando não ser economicamente vantajoso em relação à produção de ovos para o consumo, apesar do seu preço melhor e mais constante. Os Burke resolveram, então, partir para um projeto muito mais simples e menos oneroso que a produção de ovos: a produção de frangos de corte. A idéia era aproveitar os galinheiros e as instalações existentes para criar frangos em vez de poedeiras. As aves poderiam ser vendidas em apenas 90 dias, o tempo que era necessário para se produzir um frango New Hampshire com um peso médio em torno de 1,7 quilo (atualmente, com os híbridos modernos, um frango atinge mais de 2 quilos em apenas 40 dias).
O projeto de criação de frangos foi posto em prática, e como Tommy e Eddy passaram a ter mais tempo disponível, resolveram aproveitar o resto do sítio com agricultura. Compram um pequeno trator Massey-Harryson (Poney) à gasolina (com arado e grade de discos) e um conjunto de irrigação por aspersão, e passam a plantar "batatinha" ("batata inglesa"), batata doce, pimentão, abóbora e amendoim. Começaram, também, uma criação de coelhos, para produção de coelhinhos (láparos), que eram comprados pela Rhodia, para testes de vacinas e medicamentos. A criação terminou subitamente, quando, numa noite, cachorros de alguma propriedade próxima arrombaram as telas do galinheiro e das coelheiras, matando todos os coelhos.
Todos esses empreendimentos de criação e agricultura se revelaram repletos de riscos, especialmente quanto à comercialização dos produtos, ficando evidente que o sítio não seria capaz de gerar renda suficiente para sustentar as três famílias que viviam dele. Para conseguir um dinheirinho extra, Tommy e Eddy chegaram a arar e gradear terra com o trator do sítio, para um fazendeiro de Guararema, onde ficaram acampados, se revezando a cada dois dias, e trabalhando de sol a sol. Mas o resultado de tudo é que, ao longo dos anos, o sítio foi acumulando uma dívida considerável junto aos fornecedores, que só foi quitada com uma ajuda de um parente, que mandou dos Estados Unidos, como presente, uma certa quantia; com a venda da parte do sítio que ficava do outro lado da faixa da Light; a venda de postes e lenha de eucalipto, do trator e seus implementos, do conjunto de irrigação e da vaca leiteira Daisy.
Tommy resolveu, então procurar um emprego, e conseguiu ser admitido pela Secretaria da Agricultura do estado de São Paulo, como Engenheiro Agrônomo da recém criada Casa da Lavoura do município de Itaquaquecetuba, começando, assim, uma atividade que o ocuparia pelos próximos 33 anos. Trabalhou durante um ano em Itaquá (indo e vindo de trem), e depois foi transferido para a Casa da Lavoura de Mogi das Cruzes, no lugar de Edson Consolmagno, que tinha sido promovido ao cargo de Delegado Regional Agrícola. Tommy e Maria continuaram morando no sítio até 1966, depois se mudaram para uma casinha alugada em Mogi (do Seu Petená), onde ficaram até 1968, quando Tommy foi transferido para Campinas. (para mais informações sobre o casal, ver Cap. 8 – Biografias Resumidas)
Eddy e Elza, que tinham uma pequena renda do aluguel de uma casa em Mogi, recebida em herança do pai da Elza, continuaram no sítio, criando frangos (os pintinhos, agora, aquecidos por lâmpadas de luz infra-vermelho, e não mais por lampiões de querosene). Mas, numa noite, ladrões de galinha roubaram todos os frangos, que estavam quase no ponto de serem vendidos, e então Eddy também resolveu parar com criação de aves e procurar um emprego.
Desde 1952 os Burke contaram com a colaboração do empregado "Pedrinho" ou "Pedro" (Pedro Conceição). Ele era pequeno e magrinho. Havia sido empregado duma chácara vizinha (do Seu Felipe, um espanhol que trabalhava "cortando pedra" na pedreira). Pedro fazia de tudo, e aprendia coisas novas com grande facilidade. Sempre prestativo, muito alegre e divertido, tornou-se, mais que um empregado, um grande amigo de toda a família. Nunca se casou (dizia que era porque sua noiva tinha morrido poucos dias antes da data marcada para o casamento). Morava numa casinha que possuía na Vila Natal, em Mogi, de onde vinha e voltava a pé todos os dias para o trabalho. Anos depois, quando a granja foi desativada, ele foi morar no sítio, num "apartamento" (a "casa do Pedro") no qual o antigo "pinteiro" foi transformado. Ele chamava Mr. Burke de "Capitão". Nas horas de folga, Pedro costumava acompanhar Tommy e Eddy em pescarias e caçadas de pombas do mato, rolinhas, gambás, rãs e lagartos.

A "Fruticultura Mogi"

A essa altura, Tommy e Edson Consolmagno haviam resolvido se associar para a produção de mudas de oliveira (uma cultura que estava começando a se implantar no Brasil) e de algumas frutas de clima temperado. Convidaram Eddy, que não estava satisfeito no seu emprego, para administrar o empreendimento. Eddy receberia o pagamento de um salário mínimo por mês e mais uma participação nos resultados, proposta que ele aceitou, dando, assim, origem a mais uma nova fase de exploração do sítio.
Eddy, com a ajuda do Pedro (que logo se tornou um excelente enxertador), implantou a "Fruticultura Mogi". No sítio foram plantadas diversas variedades de oliveira (negrusco, arauco, manzanila, gordal) e "ligustro" (Ligustrum sinensis, uma planta da família da oliveira, empregada como porta-enxerto). No terreno vizinho, que Edson Consolmagno havia comprado da família Hartmann, foram plantados pomares de caqui, figo, maçã e "laranjinha cunquate" (que se come com casca e tudo).
No início, a principal atividade da Fruticultura, era a produção de mudas de oliveira, enxertadas em ligustro, e vendidas com as raízes envoltas em terra, dentro de balainhos de bambu trançado. Depois passou também a produzir mudas enxertadas de caqui, pêssego, maçã e noz pecan, vendidas durante o inverno, com as raízes nuas (sem terra), em feixes e com as raízes protegidas por um pouco de musgo e envoltas em saco de aniagem. Produziu também mudas de nêspera, que eram vendidas em balainhos, como as de oliveira. Quando as fruteiras entraram em produção, a Fruticultura Mogi passou também a vender caqui, figo e cunquate.
Para ajudar nos trabalhos, a Fruticultura comprou um micro-trator Tobata (a diesel), com enxada rotativa, roçadeira, pulverizador e carreta. Construiu uma estufa (de gás acetileno) para "destaninar" caqui, dentro de uma parte do grande galinheiro desativado. Também fechou um canto dele para servir de garagem e oficina para o micro-trator e seus implementos. Outra parte do galinheiro foi aproveitada para a instalação de um germinador de sementes de caqui, inventado e construído por Tommy e Eddy (aquecido por resistência elétrica e temperatura controlada por termostato).
Tommy e Eddy também inventaram um novo método para a produção de mudas de pecan e caqui: a enxertia por "garfagem em fenda inglesa, no colo da raiz do cavalo", feita sobre uma mesa. Os porta-enxertos ("cavalos") eram semeados na primavera, em tubinhos de lâmina de madeira cheios de terra, e arrancados no inverno seguinte para serem enxertados. Depois de enxertadas, as mudas eram replantadas no campo, para continuarem seu crescimento até o inverno seguinte, quando eram arrancadas para serem vendidas. Com o novo processo conseguiam ganhar um ano no tempo necessário para a produção das mudas, e elevando para quase 100% o "pegamento" dos enxertos.
Para facilitar e tornar mais rápido o enchimento dos tubinhos, eles inventaram e construíram uma máquina especial. Era uma mesa com um furo no centro e sob ele ficava preso um cilindro na vertical, no interior do qual movia-se um pistão acionado por um pedal. Sobre a mesa havia um depósito (moega), de onde a terra misturada corria por um funil para o interior do cilindro. A operação era muito simples: com o pedal, baixava-se o pistão, colocava-se a lâmina de madeira no interior do cilindro, enchia-se com terra, pressionava-se o pedal fazendo o tubinho cheio sair do cilindro, e colocava-se um elástico ao redor do tubinho. A seguir, os tubinhos cheios eram colocados em canteiros, sob um ripado, onde recebiam as sementes de caqui e de pecan.
Apesar da Fruticultura Mogi ter ido bem do ponto de vista da produção, ela nunca chegou a ser economicamente muito interessante.

O sítio começa a se desfazer
Em 1966, Tommy e Maria mudaram-se para Mogi e alugaram sua casa do sítio, e em 1968 mudaram para Campinas. Tommy desfez sua sociedade com Edson, desativando a "Fruticultura Mogi". Em 1968, Eddy e Elza mudaram-se para Mogi, e alugaram sua casa do sítio, e Eddy começou a trabalhar na fábrica de cerâmica da Cia Ceramus, em Suzano. Depois passou para a fábrica de tratores da Valmet, em Brás Cubas, como encarregado de garantia, onde trabalhou de 1970 a 1990. Em 1979, John e Cecília mudaram-se para Campinas, e também alugaram sua casa do sítio. Mr. Burke e D. Emma, que pouco a pouco passaram a ser tratados simplesmente por "Grandpa" e "Grandma" (abreviações de Grandfather e Grandmother ¾ avô e avó), continuaram vivendo na "casa do sítio". Pedro Conceição continuou morando na "casinha do Pedro", cuidando de tudo, inclusive dando uma assistência aos inquilinos das casas alugadas. Os irmãos Burke se cotizaram para manterem o sustento de Grandpa e Grandma e o pagamento do salário do Pedro.
Em 1973, Mr. Burke e D. Emma regularizam definitivamente sua situação de estrangeiros vivendo no país, tornando-se também cidadãos brasileiros.
Em 1975, os Burke venderam a parte do sítio que ficava "do outro lado da faixa da Light" (antigo "sítio do Papai Noel").
Em 1990, a parte restante do sítio foi desmembrada legalmente em 6 chácaras. Tommy e Maria, Eddy e Elza, e John e Cecília ficaram com as chácaras onde estavam suas respectivas casas. A chácara da "casa do sítio" ficou com Teta e Passos. Peggy ficou com a chácara situada entre as de Tommy e Teta, na qual ficava a "casinha do Pedro", a antiga "fábrica de ração" e uma parte do grande galinheiro.
Aos poucos, a cidade de Mogi das Cruzes foi crescendo, até encostar no sítio (primeiro a Vila da Prata). Com isso, também chegou ao sítio eletricidade da rede pública, substituindo a linha particular construída pelos Burke. A estrada para Capela do Ribeirão foi, finalmente, prolongada até a Bertioga e asfaltada.
Em 1992, a chácara da Peggy foi vendida por seus herdeiros. Em 1993, Tommy e Maria venderam a sua chácara, e em 1997 Teta e Passos venderam a chácara da "Casa do Sítio". Em 1998, a chácara de John e Cecília foi também vendida pelos herdeiros do falecido John. Resta, hoje, do "sítio" apenas a chácara de Eddy e Elza, onde residem atualmente seus filhos Luiz Ricardo, Elza Maria, e onde Paulo Burke ("Paulinho") construiu sua "mansão".

Curiosidades e Historinhas
Quando os Burke compraram o sítio, Mogi das Cruzes era uma cidade muito velha, ainda com muitas construções de taipa, e poucas ruas calçadas, e tinha apenas cerca de 30 mil habitantes. O único hospital era a Santa Casa de Misericórdia, perto das Igrejas de São Benedito e do Carmo (do Convento dos Padres Carmelitas, no Largo do Carmo). Mogi tinha um Mercado Municipal de bom tamanho, poucas lojas e uns poucos armazéns de secos e molhados. Só havia uma bomba de gasolina (de D. Anita, que era também a atendente e frentista do posto). Ficava na esquina da Rua Brás Cubas e Av. Voluntário Pinheiro Franco (a parte da estrada de rodagem Rio-São Paulo que atravessava o centro da cidade). A "Rodoviária" ficava logo depois do posto de gasolina, bem próxima do Largo do Rosário (pracinha situada em frente da Igreja do Rosário, do convento das freiras carmelitas). Havia apenas dois pontos de táxi na cidade, um ao lado da Estação e outro no Largo do Rosário. A estrada para Capela do Ribeirão (caminho para o sítio) era de terra, e começava no cruzamento das ruas Dr. Wertheimer e Ipiranga.
Largo do Rosário, com sua fonte. A Igreja e convento das freiras carmelitas foram mais tarde transformados no Hotel Binder. Na foto da direita, está a Estação Rodoviária (na década de 50). Ali terminava a Avenida Pinheiro Franco, entrada da cidade para quem vinha por Suzano (parte asfaltada da antiga estrada de rodagem Rio-São Paulo). Atrás da Rodoviária ficava o Cine Urupema.
Durante muitos anos, os Burke que moravam no sítio (Mr. Burke e D. Emma; Eddy, Elza e filhos; Tommy e Maria; John, Cecília e filhos) viveram sem energia elétrica. Ao escurecer, acendiam lampiões a querosene ("Petromax"), lamparinas e velas. Iam dormir "com as galinhas" logo após o jantar. Não tinham rádio nem TV, somente um velho gramofone, que tocava discos de 45 rotações por minuto, movido por uma grande mola, à qual se "dava corda" por meio de uma manivela. O ferro de passar roupa era aquecido com brasas de carvão colocadas no seu interior, de onde às vezes saltavam fagulhas, que causavam estragos nos tecidos. Somente em 1967 os Burke conseguiram puxar, por sua conta, uma linha de eletricidade, com 800 metros de extensão, desde a estação de transformadores da Light (ao lado da estrada para Capela do Ribeirão) até o sítio; encerrando, finalmente, o "romântico" período dos "sem-eletricidade"...
Em 1951, quando Mr. Burke, D. Emma, Tommy e Eddy se mudaram para o sítio a fim de iniciar a granja de galinhas, compraram uma perua Fordson, fabricada na Inglaterra, com bancos removíveis (para poder servir também de furgão). Esse foi o primeiro carro da família Burke depois do "carrão inglês com chofer" dos primeiros tempos em Santo Amaro, na década de 1920 (Mr. Burke nunca chegou a dirigir um carro em sua vida). A Perua do sítio não tinha motor de arranque e a partida era dada virando-se, com força, uma manivela, que era introduzida num orifício na frente do motor sob o radiador, enquanto o motorista tratava de não deixar o motor "apagar". As marchas (três à frente e uma à ré) não eram sincronizadas, e era preciso muita habilidade para trocar de marcha, esperando a rotação correta, e dando uma rápida "dupla desembreada" para reduzir de marcha. O freio era mecânico, com varejões ligando o pedal aos tambores das rodas traseiras. Dificilmente, atingia 60 quilômetros por hora, em estrada asfaltada... Com esse veículo precário e lento, Eddy foi até o Rio de Janeiro, para passear e trazer o Tommy para passar as férias de fim de ano (1951) no sítio. Não sem alguns sustos, tudo acabou dando certo...
Anos mais tarde, quando a perua começou a perder potência, eles mesmos resolveram recondicionar seu motor. Desmontaram-no, trocaram os anéis dos pistões, substituíram as válvulas que estavam queimadas e esmerilharam as outras, e o motor voltou a funcionar quase como quando era novo. Quando os amortecedores originais deixaram de funcionar (eram curtos e movidos por um braço lateral), não foi possível substituir-los, pois não existiam mais no mercado. O jeito foi rodar sem eles, e agüentar as trepidações, os solavancos e os balanços... Finalmente, a perua foi vendida para o amigo "Pedro Russo" - Pedro Fabergê (sobrinho do joalheiro do Czar da Rússia, o das famosas "Jóias de Fabergê", assassinado durante a revolução comunista de 1917), e que tinha vindo fugido para o Brasil e "aberto" um sítio na mata do bairro Tapanhaú.
Quando o sítio foi comprado, ele tinha uma pequena lagoa, muito antiga, quase toda tomada por taboa, onde havia carás. A barragem de terra estava em péssimo estado. Quando Tommy e Eddy foram morar no sítio, com a ajuda de Pedro reformaram a barragem e conseguiram eliminar grande parte da taboa. Colocaram nela alguns casais de tilápias do Nilo, e a lagoa se tornou o lugar onde várias gerações de Burke se divertiam muito pescando. Na foto aparece também uma das torres da linha de energia elétrica que dividiu o sítio original em duas partes.
Eddy – que costuma lembrar ser descendente de irlandeses – casou em 1955 com Elza Jacob Jorge, filha dos imigrantes libaneses: Jacob Jorge e Rachid Salomão. Jacob veio para o Brasil com 14 anos de idade. Tinha um irmão estabelecido no Rio de Janeiro, que lhe mandou a passagem de navio e ele veio e ficou trabalhando por lá até se casar, em Mogi, com Rachid. Ela vivia em Mogi com seu irmão Jorge Salomão e família. Parece que o casamento foi arranjado pelas famílias, pois eles não se conheciam, apesar de no Líbano terem vivido em vilas separadas por apenas alguns quilômetros.
No Líbano, durante o período da Primeira Grande Guerra (1914-1918), a família da Rachid teve amenizada suas dificuldades graças às economias que Rachid fizera vendendo coalhada, "tudo em libras esterlinas, e que ninguém sabia que ela tinha guardado..."
Após o casamento, com ajuda do irmão de Rachid, eles abriram um pequeno armazém em Mogi, no bairro do Shangai. Segundo Jacob contava, o nome do bairro surgiu por causa de um empregado seu, que possuía olhos meio fechados e que Jacob apelidou de "Shangai". Com o tempo, o bairro começou a ser conhecido como o bairro do Shangai, e assim ficou até hoje. Como bons libaneses, todas as economias que sobravam do armazém erram aplicadas na compra de imóveis, que na época erram baratos em Mogi ¾ pequena entrada e suaves prestações. Os alugueis ajudavam a dar a entrada em um novo imóvel, e assim eles foram adquirindo um patrimônio razoável, cerca de 10 imóveis, todos bem localizados.
Após alguns anos como comerciante, a "Cia. de Águas" (que construía o aqueduto para abastecer a cidade de São Paulo), localizada em Casa Grande (perto de Capela do Ribeirão), convidou Jacob para abrir um armazém dentro do pátio da Cia., devido ao fato do armazém que lá existia (do lado de fora do pátio), estar explorando demais os funcionários da empresa. Ele aceitou, e não teve que investir em instalações, pois a Cia construiu um armazém grande. Como o pagamento das mercadorias vendidas aos funcionários era descontado do salário, Jacob nunca teve prejuízo. Enquanto Jacob ficava. em Casa Grande, Rachid cuidava do armazém em Mogi. Depois de uns três anos, se sentindo muito afastado da família, ele resolveu encerrar suas atividades por lá. Jacob sempre contava que Rachid, apesar de não saber ler nem escrever, conseguia fazer a conta de tudo que o freguês levava. À medida que ia separando as mercadorias, somava de cabeça e no fim dizia quanto era o valor total, e nunca se enganava, fato confirmado pelos fregueses. Por volta de 1950, Jacob e Rachid encerraram suas atividades de comerciantes e passaram a viver de renda.
Os Burke sempre tiveram cachorros e gatos. Os gatos do sítio foram especialmente notáveis. O "Cow Puncher" ("tocador de vacas" - vaqueiro), assim chamado por causa de suas pernas abauladas, se tornou um extraordinário caçador de ratos, desde pequenino, quando foi literalmente atropelado por um enorme ratão, que saiu correndo de debaixo da "banheira" (onde a ração das galinhas era misturada) e ao qual ele se agarrou com unhas e dentes, matando-o e em seguida comendo parte dele. Daquele dia em diante, foi se tornando um verdadeiro expert na arte de matar ratos. Bastava alguém começar a chamar "Cow Puncher, rato, rato!", e lá ia ele correndo para dar cabo do bicho. Um dia, ele descobriu uma ninhada de nove ratinhos. Foi matando-os, um a um, e colocando-os lado a lado. Depois, calmamente, comeu-os, todos. Cow Puncher adorava, como todo gato que se preza, além de apanhar ratos, caçar passarinhos. Ficava escondido no meio do capim e quando um passarinho passava voando baixo, saltava e apanhava-o no ar. Aquele extraordinário caçador, contudo, ficava tomando conta dos pintinhos doentes, chegando a dormir com alguns deles nas costas e entre as patas... (mais um dos mistérios da mente felina...).
Outro gato era o "Blacky", totalmente preto, que não era muito chegado a caçadas. Preferia ficar dormindo tranqüilamente sobre a mesa da cozinha. Um dia ele tomou o maior susto da sua vida, quando a panela de pressão, na qual D. Emma estava cozinhando feijão branco, explodiu, espalhando feijão por todos os lados e fazendo um barulho espantoso. O pobre Blacky, apavorado, tentou desesperadamente fugir, mas como as portas e janelas estavam fechadas ele corria como um doido ao redor da cozinha, subindo pelas paredes, até que alguém finalmente abriu uma porta. Demorou alguns dias até que ele juntasse coragem suficiente para voltar ao seu lugar preferido...
Tommy e Maria tinham um cachorro chamado "Dique", muito manso e amigo de todo mundo no sítio. Um dia, de repente, ficou louco (apesar de vacinado contra raiva), começou a correr atrás da Maria, tentando mordê-la. Sem saber bem como, ela conseguiu fugir dele e entrar em casa. Tommy gritou avisando todo mundo, e todos fugiram para suas casas. Ele, então, pegou sua carabina e entrou na casa de John e Cecília. O Dique, espumando e completamente transtornado, voltou e subiu no tanque de lavar roupa, que ficava do lado de fora sob a janela da cozinha, tentando abrir o vitrô com as patas e os dentes. Tommy não hesitou e atirou através do vidro, matando-o, e depois o enterrou bem fundo num lugar afastado. Preocupados com o fato das três crianças do Eddy terem brincado com o cachorro pouco antes do acontecido, Tommy e Eddy levaram-nos ao Médico (Dr. Homero Gomes). Ele aconselhou leva-los ao Instituto Pasteur, na Av. Paulista, em São Paulo. Lá, por medida de precaução, as crianças receberam a primeira dose de soro anti-rábico, e como tinham levado uma declaração do Dr. Homero dizendo que ele se responsabilizaria pela aplicação das demais doses, o Instituto entregou-lhes soro suficiente para o tratamento completo. No dia seguinte, Dr. Homero aplicou nos três a segunda dose do soro (por injeção sub-cutânea na barriga), mostrando ao Tommy como fazer, e autorizou-o a aplicar todas as demais 40 injeções. As crianças começavam a chorar assim que Tommy chegava para aplicar-lhes a injeção diária bastante dolorosa, mas aquentavam firmes, pois compreendiam que aquilo era necessário "para que não ficassem com raiva e morressem como o Dique".

Os Últimos Tempos dos Pioneiros John e Emma

Quando se mudaram para o sítio, em 1951, John e Emma eram ainda bastante fortes e ativos. Mr. Burke estava com 60 anos de idade e D. Emma com 56 (nesta foto ele estava com 64 e ela com 60). Ele ajudava nos trabalhos da granja e ela cuidava da casa e colaborava em algumas outras atividades do sítio. Com o passar dos anos, eles foram diminuindo lentamente de ritmo. Passavam cada vez mais tempo assistindo notícias e novelas na TV, e jogando baralho (buraco e paciência).
Em 1969, o casal John e Emma comemorou suas bodas de ouro (1919-1969). Ele estava com 78 anos de idade e ela com 74. Nesta foto também aparece a filha Henrietta (à esquerda). No ano seguinte Mr. Burke ficou doente e foi tratado no Hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo.
Provavelmente esta seja a última foto em que John Ulic Burke aparece. Nela, John e Emma, que se aproximam do fim de uma longa, rica e difícil jornada, contemplam, com ternura, mais uma descendente que está começando sua caminhada neste mundo, a Patrícia. O que estaria lhes passando pela cabeça naquele momento? (Foto de 1974).
Em 1976, John começou a adoecer novamente, mas não foi hospitalizado, e foi, pouco a pouco, piorando, até ficar permanentemente na cama, sendo cuidado, noite e dia, por D. Emma, ajudada pelo Pedro Conceição. Tinha câncer da próstata, efizema e problema cardíaco. Foi definhando, cada vez mais, e começou a delirar. Finalmente, após ter passado os últimos dois anos de sua vida acamado, Mr. Burke faleceu, no dia 28/11/1978, data em que completava 87 anos de vida. Foi sepultado no Cemitério São Salvador, em Mogi das Cruzes.
Após a morte de Mr. Burke, D. Emma foi viver com Teta e Passos, em São Paulo. Em 1983, com a sua saúde exigindo uma assistência permanente e cada vez maior, que a Teta já não podia mais lhe dar, ela foi colocada numa casa de repouso para idosos (no alto do Pacaembu).
Em 1985, Peggy ¾ que se casara com Victor Franck em 1974, depois de ter deixado o convento em 1970 ¾ resolveu levar D. Emma para sua casa no Embu (hoje, Embu das Artes, na saída de São Paulo para Curitiba), para cuidar dela, com a colaboração de uma ajudante especializada, que Peggy contratou por lá. Por incrível coincidência, descobriu-se que a ajudante era filha da senhora que havia tocado a pensão "Casa Grande", em Perus, nos tempos em que os Burke moravam lá. Ela dizia se lembrar de ter brincado com Tommy e Eddy, quando meninos...
No Embu, D. Emma festejou seus 90 anos de idade (foto tirada nesse dia, onde também aparece Peggy). Ficou ali até 1987, quando Peggy, sentindo que não teria mais condições de cuidar dela, a colocou noutra casa para idosos, desta vez no Paraíso, onde permaneceu por algum tempo e depois foi transferida para outra casa de repouso no Brooklyn Paulista. Ali, ela foi "apagando", pouco a pouco, perdendo a memória e o interesse nas coisas; às vezes delirando, e passando cada vez mais tempo na cama. Em fins de fevereiro de 1989, pegou pneumonia e acabou falecendo no dia 01/03/1989, aos 94 anos de idade. Foi levada para Mogi e sepultada ao lado de Mr. Burke, seu inseparável companheiro de toda uma longa e difícil vida.
† Terminou, assim, a saga do casal fundador da família Burke no Brasil. Seus descendentes guardam com admiração, saudades e carinho suas memórias.
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Pedro Conceição, que havia colaborado durante mais de 40 anos com os Burke no sítio, e ajudado D. Emma a cuidar do "Capitão" nos dois últimos anos de sua enfermidade e que continuou a assistir aos novos proprietários das chácaras durante mais alguns anos, e cuidava carinhosamente da sepultura de John e Emma, um dia simplesmente desapareceu sem deixar vestígios. Por mais que Eddy tentasse, ele nunca conseguiu descobrir nada sobre o paradeiro do velho companheiro e amigo da família. Talvez ele tenha simplesmente resolvido fugir para longe de tudo que pudesse recordá-lo daquele convívio com as pessoas que o amaram e que aprendera a amar e a cuidar como se fossem seus únicos parentes na Terra.

2 comentários:

ELAINE ERIG disse...

Tenho um retrato feito por TRALDI (maravilhoso ) em 1926 é de um homen claro que pode ser parente seu ,entre em contacto Elaine

Leonardo Antonio disse...

Olá morei por 20 anos na casa dos burker em Perus