30/10/2008

OUTRAS HISTÓRIAS


A ESTRADA DE FERRO PERUS-PIRAPORA E A FÁBRICA DE CIMENTO

C1 - NOS TRILHOS DA PERUS-PIRAPORA
Fonte: Prefeitura Municipal de Cajamar

ORIGENS
As origens da E.F.P.P. remontam ao século passado, quando se iniciaram as explorações de cal na região compreendida entre Caieiras e Cajamar. A região, hoje cortada pela Via Anhanguera, apresenta uma grande concentração de calcário, cuja exploração para obtenção de cal era feita no bairro do Gato Preto pela família dos Beneducci, em terras do Dr. Arthur Moraes Jambeiro Costa. Também mais para leste, onde hoje se situa o Município de Caieiras (nome derivado da atividade local), o calcário era explorado pelo Coronel Rodovalho, proprietário de grande faixa de terras, que pelo que consta, "... recebeu como recompensa por atos de bravura durante a guerra do Paraguai..."
Nos idos de 1910, a cidade de São Paulo, em franca expansão, exigia o uso cada vez maior de cal nas edificações que iam sendo erguidas. Os empresários Sylvio de Campos, Clemente Neidhart e Mário W. Tibiriçá decidem então criar juntamente com os Beneducci, uma empresa mista para exploração de cal produzida no Gato Preto, e para o transporte do produto final até a estação Perus da então S.P.R. (São Paulo Railway).

1914 : A GUERRA NA EUROPA e a INAUGURAÇÃO DA E.F.P.P.
Em 1914 a Alemanha declara guerra às potências aliadas. As manchetes dos jornais paulistas até o dia 4-agosto-1914 referiam-se ao conflito eminente entre as Potências Européias e o Império Austro-Húngaro, porém no dia 5 de agosto, elas mudam, pois "A Guerra Européia" já era um fato. Esses acontecimentos fazem com que a imprensa "se esqueça" de um fato até então bastante comum, mas que era sempre presente nos jornais: A descrição da viagem inaugural de uma ferrovia.
Assim, inaugurava-se o tráfego na Estrada de Ferro Perus-Pirapora no dia 5 de agosto de 1914 e desta viagem somente temos o relatório do Dr. Paulo de Moraes Barros, Secretário da Agricultura, que em sua mensagem referente ao ano de 1914 e apresentado ao Dr. Francisco de Paula Rodrigues Alves em 1915 menciona o seguinte: Na Estrada de Ferro Perus Pirapora foi inaugurado em 5 de agosto de 1914 o tráfego na estrada, no trecho entre Perus e o Km 16, com as tarifas aprovadas.

ESTRADA DE FERRO PERUS-PIRAPORA
A partir de 1924 já começa a figurar o nome de Estrada de Ferro-Perus Pirapora e não mais Companhia Industrial e de Estrada de Ferro Perus-Pirapora nos atos oficiais, devido ao fato da empresa haver sido dividida em duas, sendo uma para a exploração do calcáreo e outra para a operação da ferrovia.

"THE BRAZILIAN PORTLAND CEMENT COMPANY"
Em 1.923, a empresa canadense Drysdale & Pease, de Montreal, procurou áreas adequadas para a produção de cimento nas imediações dos centros consumidores escolhendo o bairro de Perus, na linha da Inglesa (S.P.R.), "...pois já existia um complexo em atividade e que com pequenas modificações poderia produzir cimento Portland...", servido por uma estrada de ferro industrial (a E.F.P.P.) e uma que se ligava ao "interland" (a S.P.R.) e ao porto (de Santos) e que portanto levaria o produto final ao consumidor e transportaria para o complexo industrial os insumos necessários à produção.
O grupo proprietário da C.I.E.F.P.P. e os interesses Canadenses unem-se e funda-se a Companhia Brasileira de Cimento Portland, sendo os dirigentes brasileiros os Srs. Silvio de Campos e Jambeiro Costa e por parte dos canadenses os Srs. M. M. Smith ¾ que seria o Diretor-Gerente¾, o mesmo que já procurara em todo o Brasil lugares para a construção de fábrica de cimento pelo sistema "Portland". Vale destacar que, nos interesses Canadenses, a Light and Power Co. estava presente.
Em 1925 forma-se a "The Brazilian Portland Cement Company" no Canadá.
Abril de 1926: a fábrica de Perus iniciou a produção do produto nacional que até aquela data era importado, atingindo sua plena capacidade somente em maio do mesmo ano, vendendo 96% de sua produção para a Light and Power Co.
Com os Canadenses ficou a fabricação do cimento; os acionistas da família Campos exploravam os fornos de cal, utilizando o calcáreo com alto teor de magnésio, produto este impróprio para a fabricação do cimento, utilizava-se ainda os refugos da fábrica para produzir também cal. Competia à ferrovia transportar o calcáreo para Perus e dali trazer produtos para a fábrica de cal em Gato Preto.
No final dos anos 20 adquiriu-se uma pedreira em Cajamar e 4 novas locomotivas tipo AAR 2-4-2 ST, que foram compradas da ALCO (American Locomotive Company), além de outra locomotiva do mesmo tipo e da mesma empresa, porém fabricada em Montreal.
Através da empresa Orenstein & Koppel, (mais tarde Arthur Koppel-USA) comprou-se vagonetas confeccionadas em aço da Magor Car Company para o transporte de calcáreo. É importante ressaltar que esse material rodante era de propriedade da B.P.C.C. (Brazilian Portland Cement Co.) e apenas utilizavam o leito da E.F.P.P., não fazendo parte do acervo da mesma.

"BRAZILIAN PORTLAND CEMENT Co." - MUDANÇAS DE RUMO
Em 1939, temos a saída da C.I.E.F.P.P. de Florindo e Flávio Beneducci, fundadores e principais acionistas da exploração de cal em Gato Preto, que confirma a exclusividade da ferrovia a serviço dos interesses da B.P.C.Co. Nessa época, o transporte médio diário de pedra calcaria era de 1.100 toneladas. Em 1942, compram-se diversas locomotivas da "Dumont Coffee Corporation" (Companhia Industrial e Agrícola Fazenda Dumont).
O controle de preços do cimento por parte do Governo Federal forçou a companhia de capital estrangeiro a vender a empresa em 1951. Interessaram-se pela compra o Grupo Francisco Matarazzo, o Grupo Votorantim e José João Abdalla, então Secretário do Trabalho do Governo Ademar de Barros. Para variar, mais uma vez os interesses políticos e os conchavos acabariam prevalecendo sobre a competência industrial reconhecida. Coube a João José Abdalla, em 27 de novembro de 1951, a compra da Brazilian Portland Cement Company - B.P.C.C.. Conseqüentemente, incorporava também nessa ocasião a Estrada de Ferro Perus Pirapora.
Em 1951 a "The Brazilian Portland Cement Company" (Canadá) passa a denominar-se Companhia Brasileira de Cimento Portland-Perus. [Nota de T.J.B.: ou talvez Companhia Brasileira de Cimento Portland Ltda, como aparece na foto de uma das locomotivas].
Após a aquisição do conglomerado por J. J. Abdalla, ferrovia e fábrica voltaram a fazer parte de um único complexo, mas continuaram como empresas independentes. A aquisição de todos os materiais rodantes continuou a ser feita em nome da "Companhia Brasileira de Cimento Portland Perus", que passou a ser o logotipo aplicado a todas as locomotivas.
A fábrica de cimento comprou ainda mais dois fornos rotativos. Nessa época uma composição ferroviária da Perus-Pirapora compunha-se de 18 gôndolas, ocasionalmente, 1 carro tanque para transporte de óleos, combustível ou diesel, 1 vagão de carga e 1 carro de passageiro.
Em 1974, a Companhia Brasileira de Cimento Portland Perus é incorporada ao Patrimônio Nacional, assim como a Estrada de Ferro Perus-Pirapora. Em 1978 a Prefeitura do Município de São Paulo, adquire da União a área de 370 alqueires transformando a área no Parque Anhanguera. Em 1979 coloca-se o acervo incorporado a União em licitação. Às vésperas da abertura da licitação para a venda dos bens incorporados (março de 1980), a Associação Brasileira de Preservação Ferroviária - ABPF solicita ao Condepahaat a abertura de processo de tombamento do acervo ferroviário e seu entorno.
Em maio de 1980, constitui-se em consórcio para a compra do patrimônio incorporado, as empresas Sergio Stephano Chohfi Engenharia & Comercio S/A e a Cia Agrícola e Pastoril Fazendo do Rio Pardo, vencendo a licitação que compreendia o acervo da Companhia Brasileira de Cimento Portland Perus e Estrada de Ferro Perus Pirapora.
Em 1981 é vendida a Companhia Industrial, sendo a sua gestão de incorporação ao patrimônio Nacional encerrada em 30/1/81 e tomando posse os seus novos proprietários em 2 de fevereiro de 1981, constituindo-se a Fábrica Nacional de Cimento Portland Perus (F.N.C.P.P.) e a Ferrovia Perus-Pirapora Ltda (F.P.P.).

FIM DAS OPERAÇÕES
A Fábrica de Cimento, na década de 80, passou a apresentar problemas críticos de poluição, causados pela crescente falta de manutenção e modernização dos equipamentos, que após a venda pelos Canadenses, não mais recebeu os mesmos cuidados de antes.
Em função de diversos protestos da população, a fábrica passou a operar parcialmente, o que acabou por ocasionar a paralisação da ferrovia e finalmente, em janeiro de 1983, são sucateados os fornos 1 e 2, paralisados o 3 e 4 para reforma, assim como as pedreiras de calcáreo e a ferrovia, sendo o clinquer adquirido do Cimento Santa Rita, limitando-se a C.N.C.P.P. a moê-lo e ensacar o cimento.

CONDEPAHAAT
Conforme já falamos acima, a Associação Brasileira de Preservação Ferroviária - ABPF solicitou ao Condepahaat a abertura de processo de tombamento do acervo ferroviário e seu entorno, o que, após muitas idas e vindas acabou resultando que, em janeiro de 1987, foi assinado pelo Condepahaat decreto tornando Patrimônio Histórico a Ferrovia Perus Pirapora.
Apesar disso, pouco ou nada foi feito até agora para realmente preservar esse patrimônio, que poderia muito bem ser convertido em mais uma fonte de receitas turísticas para 2 ou 3 municípios de São Paulo (inclusive a Capital), e praticamente todo o material "preservado" pelo Condepahaat está largado ao tempo, deteriorando-se lentamente, conforme pode ser visto por quem se aventura a percorrer o que ainda resta das instalações da ferrovia.

AS SIGLAS DA EFPP
Ao longo dos anos, desde sua inauguração em 1914, devido às diversas transferências de propriedade e interferências governamentais, essa ferrovia operou sob companhias de diversos nomes, embora tenha sido conhecida, praticamente desde seu início, como Estrada de Ferro Perus-Pirapora. Foram as seguintes as principais siglas utilizadas na ferrovia ao longo de sua existência:

· C.I.E.F.P.P. - Cia. Industrial e de Estradas de Ferro Perus-Pirapora - 1910 a 1939;
· E.F.P.P. - Estrada de Ferro Perus Pirapora - 1939 a 1981;
· B.P.C.C. - The Brazilian Portland Cement Co - 1926 a 1951;
· C.B.C.P.P. - Cia Brasileira de Cimento Portland Perus - 1951 a 1974;
· SOCAL - Socal S. A. Mineração e Inst. Florestais - 1974 a 1983;
· C.E.I.P.N. - Conselho de Empresas Incorporadas ao Patrimônio Nacional - 1974 a 1981.

ESTRADA DE FERRO PERUS-PIRAPORA
por Charles Small

"Perus-Pirapora Railway in the Brazilian Steam Album, by Charles Small – 1984" [A Ferrovia Perus-Pirapora no Album Brasileiro "A Vapor", por Charles Small – 1984] [tradução de Thomas J. Burke]

Durante 1919, três empreendedores de São Paulo decidiram construir uma linha férrea para trazer cal para a cidade. Esse era um período antes que a produção de cimento Portland tinha começado. Os depósitos de pedra calcárea e as caieiras ficavam ao norte de São Paulo, na direção de Campinas. Possivelmente, para tornar o projeto mais atraente para as autoridades do governo brasileiro, que podiam dar a concessão, eles também solicitaram autorização para construir uma linha até Pirapora. Esta era a localidade de santuários, que eram visitados por um grande número de fieis nos dias santos.
A linha deveria começar em Perus, que estava na linha tronco, de bitola larga, que ligava o porto de Santos com São Paulo e continuava rumo norte para Jundiai. Ali ela encontrava a linha de bitola larga da Companhia Paulista, que servia a parte norte do Estado. As caieiras ficavam numa grande área de terras de propriedade do Dr. Jambeiro. Essa área estava separada da linha tronco por uma cadeia de morros. Para ir de Perus, logo acima da divisa norte de São Paulo, até a área das caieiras, era preciso descer para dentro do vale do Rio Juqueri. Sem dúvida, a bitola de 23 5/8" [60cm] foi escolhida com base no custo de construção.
Existiu, até o dia em que a linha parou de operar em fevereiro de 1983, um lugar chamado Entroncamento. Entroncamento significa uma junção, e era o local onde o ramal [para Pirapora] sairia.
A linha foi construída quase que diretamente na direção oeste, num forte declive, até o nível do rio. No pé do declive foram construídas passagens laterais [desvios] e um "Y" [para permitir manobras]. A rampa [aclive] ficava no sentido contrário dos trens carregados indo para Perus. Talvez isto não fosse um obstáculo para as locomotivas originais e cargas comparativamente leves, mas mais tarde obrigou ao uso de locomotivas auxiliares ou a divisão das composições em duas. No quilômetro 15,5, a linha virava para o norte e cruzava o Rio Juqueri, depois contornava os morros até Gato Preto, onde ficavam as caieiras e os depósitos, com um ramo prosseguindo até outras caieiras e a pedreira original. Dizem que havia um total de oito caieiras servidas pela linha.
Para começar a linha, foram importadas quatro locomotivas da Baldwin (duas 4-6-0 e duas 2-4-0). Isto, certamente, era mais do que suficiente para uma linha de 12 milhas de extensão, o que faz acreditar que eles realmente queriam ir até Pirapora, o que traria um tráfego de passageiros. Uma carta nos arquivos da Baldwin indica que nalguma ocasião antes de 1920 as duas 4-6-0 foram vendidas para uma transportadora de carvão do Sul, que as rebitolaram para 1.000 mm. Movendo-se as rodas de dentro para fora dos chassis, faria esse alargamento. Assim ficaram as duas 2-4-0. Essas máquinas trabalhariam na linha principal. Eles então compraram quatro máquinas tanque de segunda mão da classe de 5 a 8 toneladas.
As linhas nas caieiras ficavam em três níveis. No nível superior ficava o lugar onde a pedra calcárea era descarregada para dentro das caieiras. O próximo nível abaixo era o da lenha combustível. Finalmente, no nível do terreno era onde a cal acabada era carregada. As pequenas máquinas tanque trabalhariam entre a pedreira e as caieiras. Elas tinham "soquetes" acopladores para os acopladores pino e link, à altura dos vagões Decauville standard.
1920 marcou a construção de uma fábrica (usina) de cimento Portland em Perus. Ela foi construída pela "Brazilian Cement Company", uma empresa canadense. A companhia de cimento, evidentemente, olhou para modesta coleção de pequenas máquinas tanque e decidiu comprar sua própria potência motiva. Ela escolheu locomotivas tanque sela Alco-Cooke 2-4-2, comprando quatro inicialmente, e mais tarde outra da Alco-Montreal. Estas máquinas tinham os nomes de suas próprias fábricas e eram numeradas de 1 a 5. Assim, esses números eram duplicados pelas locomotivas da ferrovia, o que seria um mero detalhe numa "two-footer" [de dois pés, aprox. 60cm]. A moderna fábrica de cimento consumia pedra calcárea num ritmo muito maior do que o das antigas caieiras. Uma caieira sobreviveu em operação até meados dos anos 1970.
Uma nova pedreira para a fábrica de cimento foi aberta em Cajamar [então Água Fria]. Novamente, outro aclive saindo de Cajamar ia contra os trens carregados. Para a nova fábrica a companhia de cimento comprou vagões de aço para transporte de rochas da Magor Car Co., em Nova Jersey. Estes eram equipados com acopladores automáticos pequenos. Eles tinham uma articulação fendida, pois todas as locomotivas conservaram os antigos acopladores de link e pino. Por alguma razão obscura, esses vagões foram comprados de Orenstein & Koppel.
Com o aumento do tráfego na linha principal e do peso dos trens, a companhia férrea andou procurando mais locomotivas "two-foot" [bitola 60cm]. Estas eram disponíveis nas principais companhias que haviam construído ramais alimentadores "two-foot" nas áreas de produção de café. Como uma curiosidade interessante, deve-se notar que a produção brasileira de café, num período de 100 anos, moveu-se num grande arco, começando ao norte do Rio de Janeiro, e, movendo-se no sentido anti-horário, saltou o Estado de Minas Gerais para dentro do Estado de São Paulo, e daí para o Paraná. Em cada uma dessas fases, o movimento deixou para trás ferrovias sem tráfego. Os ramais de "two-foot" ou foram abandonados, ou alargados para a bitola de um metro.
Depois que as duas originais 2-4-0 haviam parado, a linha subsistiu com não menos que 14 locomotivas de segunda mão. Estas duraram por mais de 60 anos. Somente quando a concha da caldeira ficava demasiado fina é que a máquina era posta de lado. A oficina de Gato Preto tinha apenas equipamentos simples. Eles remendavam as máquinas que tinham sofrido acidentes menores. Partes tiradas de máquinas desativadas eram usadas para manter outras funcionando. Provavelmente uma pequena manutenção era feita prontamente. Rodas eram trocadas, hastes laterais de bronze eram mantidas apertadas, pistões ajustados, as pequenas tarefas que impediam grandes quebras.
As últimas novas potências motivas foram duas H.K.Porter 2-6-2, compradas pela companhia de cimento em 1945. Mais tarde elas foram convertidas para a queima de óleo, com queimadores que produziam mais fumaça do que calor. A fumaça gordurosa de óleo era um bônus para o fotógrafo [há muitas fotos vistosas mostrando grossos rolos de fumaça negra saindo das chaminés das locomotivas].
Paises em desenvolvimento menos sofisticados confiscam bens de companhias estrangeiras. O procedimento no Brasil foi impor um controle de preço e manter os preços dos serviços das companhias abaixo do custo de produção. Dessa forma, todas as ferrovias do sistema, as linhas que não pertenciam ao governo desde o começo, foram tomadas, ou pelos governos estaduais ou pelo federal. O controle de preço do cimento forçou a companhia canadense de cimento a vendê-la em 1951.
São Paulo continuou a se desenvolver rapidamente. Os impostos em propriedades sem benfeitoria eram maiores do que naqueles em que havia uma edificação. Teoricamente, isso foi feito para coibir especulação. De fato, causou um surto de construção. Isso veio junto com uma inflação fantástica, que levou as pessoas a procurarem algo tangível no qual investir. O negocio do cimento explodiu, e a fábrica adicionou mais dois fornos giratórios. A ferrovia nunca esteve tão ativa.
No trajeto de Perus a Cajamar a linha cruzava sob a principal rodovia para Campinas e interior do Estado. Essa via tinha tráfego intenso. Poucos, se alguns, dos motoristas se apercebiam da ferrovia abaixo. A área das oficinas de Gato Preto eram visíveis da rodovia. Ninguém se incomodava em olhar. É quase certo que os habitantes de São Paulo não sabiam que um pedaço vivo de história existia quase dentro dos limites da cidade.
Um trem consistia de oito vagões basculantes de aço, ocasionalmente um carro tanque de óleo combustível ou diesel, de vez em quando um velho vagão de maneira fechado, e um vagão de passageiros. Os vagões de aço eram construídos pela Magor nos Estados Unidos, mas traziam também uma placa da Arthur Koppel – USA. Os quatro velhos vagões de passageiros tinham a inscrição E.F.P.P. em amarelo. Não possuíam freios de potência. As locomotivas tinham um freio a vapor atuando nas rodas motrizes. Os vagões de aço basculantes tinham acopladores automáticos americanos miniatura, mas as locomotivas tinham apenas acopladores de link e pino. Os vagões basculantes tinham uma articulação fendida e um link era usado entre eles e a máquina. Um pedaço de corrente, seguro por um parafuso no último vagão basculante, era a tênue conexão do carro de passageiros ao trem.
O trem parte através de um portão no fim oeste da fábrica e para com o vagão de passageiros ao lado de um abrigo, pois este é agora a estação de passageiros. Os passageiros são empregados da Companhia ou as poucas pessoas que vivem ao longo da linha, ou aqueles que vão para Cajamar atraídos pela tarifa, que é zero. Pode-se viajar os 20 kms da linha grátis, desde que você não se incomode com os bancos duros de madeira no vagão de passageiros, ou com os solavancos quando o vagão salta devido ao tranco da corrente frouxa.
Deixando a fábrica, há uma descida acentuada, aproximadamente 3%, serpenteando para dentro do vale do Rio Juqueri. Há cortes profundos através da laterita nas curvas, até que os trilhos atingem o nível da água no "Corredor". "Corredor" consiste de três ramais laterais, um "Ý", e um telefone de bloqueio – nada mais. [É interessante acompanhar esta viagem voltando ao mapa].
Os ramais laterais existem porque os trens com 18 vagões carregados com pedras não conseguem subir a rampa com apenas uma locomotiva. Se uma máquina de percurso está disponível na fábrica, ela corre leve até o Corredor, acopla com a máquina do trem e, no meio de grossas nuvens negras de fumaça gordurosa, as duas máquinas levam o trem encosta acima a 10h/h. Quando outra máquina de percurso não está disponível, metade dos vagões com pedras são deixados numa das laterais do Corredor. Quando a primeira metade do trem chega na fábrica, a máquina volta para apanhar a outra metade.
Dali, os trilhos acompanham o tortuoso Rio Juqueri. Para evitar muito trabalho de terraplenagem, há uma sucessão de rampas curtas, para cima e para baixo. Para o norte, as encostas estão cobertas com pinheiros ou eucaliptos plantados pela Cia Melhoramentos de São Paulo, que possui uma grande fábrica de papel em Caieiras. (Há uma linha com bitola de 1.050 mm na fábrica de papel, ao norte de Perus, com locomotivas a vapor Krauss de segunda mão do sistema Tram Way de São Paulo. Aquela linha foi mudada para tração a diesel entre 1948-1949. Os dejetos da fábrica de papel encontram seu caminho para dentro do Rio Juqueri e tornam suas águas negras).
O próximo desvio lateral chama-se simplesmente "Quilômetro 8", e consiste de um desvio lateral e um telefone de bloqueio. A linha fica espremida entre o rio e os altos morros para o sul.
A tripulação do trem é formada por três homens: o maquinista, o foguista e o encarregado dos freios. Quando o trem chega a um cruzamento ele para e um dos tripulantes telefona para o controlador de tráfego, que autoriza o trem a prosseguir ou manda esperar pelo trem que vem no sentido contrário. Entre os terminais, o responsável pelos freios tem pouco mais a fazer que conversar com os passageiros, a não ser quando o trem se parte em dois, o que não é muito raro. Quando isso acontece, ele aperta os breques manuais na parte final do trem e espera a locomotiva com a parte da frente do trem voltar. Ele, então, religa os dois pedaços do trem e ele parte novamente.
Alguns quilômetros depois do "Km 8", a linha passa por um corte profundo e depois sob a Via Anhanguera, que vai para Campinas. A seguir, o vale se alarga um pouco e chega-se ao próximo cruzamento, chamado "Km 12".
Depois a linha cruza o Rio Juqueri numa ponte de concreto e vira para o norte. Se você comprasse um mapa na melhor loja de mapas de São Paulo, você veria nele uma estação ali perto chamada de "Entroncamento". Era ali que deveria ficar a conexão com a linha para Pirapora. No há qualquer sinal da estação, nem se vê qualquer conexão.
A edição de 1945 do Guia Levi – o horário de todas as ferrovias brasileiras – mostra uma viagem de ida e volta na E.F. Perus-Pirapora. O trem "M-3" [foto] partia de Perus às 08:45, da Fábrica de Cimento às 9:05, e chegava no "Entroncamento" às 09:48. No sentido contrário, o trem "M-2" partia do Entroncamento às 16:05, da Fábrica às 16:51, e chegava em Perus às 16:54.
O cruzamento em "Mirim" está numa área de topografia relativamente aberta, e uma pequena distância adiante, no Km 18 ("Rocha") está a junção com a linha para Gato Preto. Há um grande pátio de manobras em Cajamar, que está num amplo (para esta região) vale, e aqui a locomotiva de linha é desconectada e revertida no "Y".
O vagão de passageiros é desligado e desviado do caminho pela No. 1, a outra Alco 2-4-2T. Isto feito, a No.1 e a No. 14, uma Baldwin 2-6-2TT, se acopla ao fim do trem e, com os aceleradores a pleno vapor, avançam pelo pátio ganhando velocidade para a forte subida até a área das pedreiras.
Próximo à pequena oficina de reparos e o pátio de lenha, onde é serrada lenha para a caieira de Gato Preto, está a casa-tesouro de locomotivas inservíveis de Cajamar. Há espécimes americanas, canadenses, francesas e alemãs, em vários estágios de decomposição, e para o historiador ferroviário, cada locomotiva tem a placa do seu construtor intacta.
Voltando ao Quilômetro 18 Rocha), há uma junção frontal, indo em direção a Perus, com a linha para Gato Preto. Há uma chave de linha e um telefone, nada mais. Não há qualquer sinal de um "Y" ou de desvios. A linha tem 5 km de comprimento, e a aproximadamente meio quilômetro do final uma linha diverge para a esquerda e sobe a face do morro, fazendo, juntamente com a linha inferior, uma curva de 150º. . Três quartos da distância ao redor da curva há uma outra linha que sai para a esquerda, e ela também começa a subir.
A primeira linha divergente é a que vai para a parte de cima das caieiras, a segunda chega até o nível inferior da caieira cônica, que é o nível da fornalha. No nível superior, a caieira restante é carregada por vagonetas basculantes de 4 rodas, com capacidade de um metro cúbico, do tipo Decauville. A lenha é trazida de Cajamar em vagões abertos standard, que têm dois truques de quatro rodas.
A oficina de Gato Preto é um lugar fascinante. As locomotivas na oficina variavam a cada visita. Uma vez, a No. 2 lá estava, com a viga piloto arrancada e o suporte do farol entortado para o alto devido a uma colisão. Espalhados por todos os lados, há uma variedade de peças, rodas motrizes, hastes e apenas ferro velho, que talvez um dia venha a ser útil. Geralmente você podia encontrar uma das Porters ou uma Baldwin sendo desmontada ou remontada.
Perto de uma caieira remanescente, há um depósito de ferro velho com os restos de uma ex-Paulista 2-6-2T. Há o esqueleto, os cilindros e as rodas de outra Baldwin muito enferrujada, que não tem quaisquer marcas de identificação. Há outra, um pouco mais completa, mas também sem placa do fabricante. Nesta, a placa de numeração da porta da caixa de fumaça está intacta e mostra o no. 13. Uma peça fascinante é uma caldeira com uma caixa de fumaça artesanal. Na caixa de fumaça está montada uma placa Baldwin, no. 5982, com a data 1 – 1882. Esta placa estava originalmente numa máquina da Leopoldina, de bitola de um metro. Há na área pedaços do estoque rodante original e de um carro à gasolina. Parece que nada jamais era jogado fora.
Durante anos a fábrica de cimento triturou 2.000 toneladas de rocha calcárea por dia, que as velhas máquinas arrastavam até Perus, em 18 vagões de carga, com o vagão de passageiro acorrentado fechando a fila. No "Corredor", a máquina fazia duas subidas até a fábrica, ou uma das Alco 2-4-2T descia de Perus para ajudar. Os 12 trens mantinham a linha sempre ocupada, do amanhecer até o pôr do Sol.
Por volta de agosto de 1948, as número 10, 11, 14, 16, 17 e 18 estavam guardadas e poderiam voltar a funcionar. As Alco 2, 3 e 5 também estavam guardadas e utilizáveis. A habitante mais velha depois da no. 1, a única locomotiva batizada – DR. SYLVIO DE CAMPOS – no seu octagésimo terceiro aniversário, ainda existe como um testemunho à longevidade destas pequenas locomotivas à vapor.


HISTÓRIA DA PERUS-PIRAPORA


"Perus-Pirapora Mining and Railroad Company"
Texto de Nilson Rodrigues; tradução de Thomas J. Burke

ORIGEM
Nos idos de 1890, a indústria da extração de calcáreo estava muito ativa na região abrangida pelas cidades de Caieiras, Cajamar [Água Fria, Sant'ana do Parnaiba e a parte norte-nordeste de São Paulo.
Naqueles tempos, esse tipo de indústria estava crescendo devido à indústria da construção civil em são Paulo, ávida por esse produto. Um grupo de empreendedores decidiu criar uma companhia para explorar o calcáreo na região de Gato Preto (Cajamar) e transportar o produto final para São Paulo, usando uma conexão na estação da SPR (São Paulo Railway Co), a ferrovia de bitola larga ligando São Paulo a Jundiai. Seria uma companhia mista, formada por um sistema minerador/ferroviário. Seu nome era CIEFPP [Companhia Industrial e Ferroviária Perus-Pirapora], iniciais brasileiras de "Perus-Pirapora Mining and Railroad Company".

NOME
O nome Perus-Pirapora foi escolhido devido ao projeto original. A finalidade principal da ferrovia era ligar os trilhos da SPR em Perus com a vila santuário de Pirapora, distante 40 km de Perus. Naqueles tempos, Pirapora era uma vila importante, com milhares de visitantes por mês, na busca de milagres...
O verdadeiro objetivo do projeto era de fato o transporte de pacotes de cal até a estação de Perus. O projeto e respectivo nome foram apenas um jeito de conseguir a permissão do governo para construir a estrada de ferro.

OPERAÇÕES
A inauguração das operações da companhia foi no dia 5 de agosto de 1914.
O equipamento rodante foi adquirido da Baldwin (locomotivas) e produtos Belgas (carros de passageiros e de carga). A bitola escolhida foi 60 cm, devido a restrições de espaço. A extensão total entre Perus e Gato Preto era 20 quilômetros.
Em Gato Preto foram construídos 5 fornos [caieiras], a fim de aumentar as atividades mineradoras daqueles tempos. Desde as minas [pedreiras] até os fornos [caieiras] foram empregadas pequenas locomotivas Decauville e vagonetas.

A INDÚSTRIA DE CIMENTO
Em 1926, as grandes jazidas de calcáreo atraíram a atenção de uma companhia canadense de Montreal. A quantidade de calcáreo no sub-solo era significativa, assinalando um bom futuro para a companhia. Assim foi fundada a "Brazilian Portland Cement Co", a primeira companhia de cimento no Brasil.
O local para a mineração escolhido foi a vila de Água Fria [Cajamar], muito perto de Gato Preto. A fábrica de cimento seria em Perus, devido à proximidade com os trilhos da SPR. As funções foram ampliadas e uma extensão da linha férrea foi construída para chegar até Água Fria, para o transporte da rocha calcárea entre as pedreiras e a fábrica.

MUDANÇAS DE NOME
Em 1940, a companhia foi dividida em duas, a mineradora e a ferrovia. A ferrovia tornou-se "Estrada de Ferro Perus-Pirapora", funcionando com uma entidade separada, transportando cal e pedra calcárea para a fábrica de cimento. A permissão para do serviço de passageiros era entre Perus e Km 16, de acordo com os termos da concessão inicial. A CIEFPP original foi extinta.

FIM DA PROPRIEDADE CANADENSE
Pelos fins dos anos quarenta, o governo brasileiro encontrava-se no "processo de nacionalização" de todas as indústrias que ainda estavam sobre controle estrangeiro. A "Brazilian Portland Cement Co" foi vendida pelos canadenses em 1951 para João José Abdalla, então Secretário do Governo do Estado de São Paulo. Foram incluídos na negociação a ferrovia e as minas em Cajamar. O nome da nova companhia também foi nacionalizado para "Companhia de Cimento Portland Perus". A ferrovia foi mantida como uma companhia separada, conservando seu nome, "Estrada de Ferro Perus-Pirapora".

INTERVENÇÃO
Em 1974, o complexo sofreu uma intervenção devido ao não pagamento de tributos. Grandes áreas de terras também foram tomadas pelo governo, para pagamento dos tributos atrasados. Nessa ocasião, a fábrica sofria com muita poluição, devido à má manutenção do equipamento. A produção estava no seu auge, mas os prejuízos à atmosfera também eram altos, causando protestos da população contra a poluição.
Durante aquele tempo, o material rodante estava adornado com a manchete "CEIPN", que significa Conselho de Empresas Incorporadas ao Patrimônio Nacional.
Em 1981, o governo não estava satisfeito com os resultados da companhia, e os movimentos populares contra a poluição eram fortes. Então, o complexo foi vendido de volta aos Abdalla. O nome mudou para "Fábrica Nacional de Cimento Perus", e o nome da ferrovia foi mudado para "Ferrovia Perus-Pirapora Ltda.".

FIM DAS OPERAÇÕES
Em 1983, a poluição causada pela fábrica não era responsabilidade de ninguém, e os ganhos eram pequenos devido às más condições dos equipamentos. A fábrica foi à falência, e a ferrovia, não tendo mais o que transportar, cessou suas atividades, depois de praticamente 70 anos em operação. O serviço de passageiros já não era mais disponível, pois Abdalla o tinha eliminado em 1972. Nos seus últimos dias de operação, o trem básico era um comboio de gôndolas com pedra calcárea, e um vagão de passageiros no seu fim, para o transporte de empregados.
Por essa ocasião, nada menos que 10 locomotivas estavam ativas. Algumas eram mantidas em boas condições, algumas não. Pode-se supor que duas ou três máquinas pudessem funcionar com pequenos serviços de manutenção.


JOÃO PASSOS E LAMPIÃO

João Ferreira Passos nasceu em 1913, em Geremoabo, na Bahia. Ainda menino costumava viajar sozinho pelo sertão do nordeste conduzindo uma tropa de mulas, numa região infestada por cangaceiros. Levava farinha de mandioca, rapadura e carne seca, que vendia ao longo dos caminhos. Quando tinha cerca de vinte anos de idade, alistou-se numa "volante" e tomou parte várias operações de perseguição e combate visando capturar, vivo ou morto, o bando do legendário Lampião (Virgulino Ferreira da Silva), o "Rei do Cangaço" (ver mais abaixo).
Esta foto de João Passos foi tirada por volta de 1937, logo após ele ter deixado a volante e ter vindo para São Paulo, "para tentar a vida", e onde veio a se casar com Henrietta Burke em 1941.

UM POUCO SOBRE LAMPIÃO E O SEU BANDO


Lampião até hoje é considerado o Rei do Cangaço. Virgulino Ferreira da Silva nasceu em 1897, na comarca de Vila Bela, região do Vale do Pajeú, Pernambuco. No sertão castigado por secas prolongadas e marcado por desigualdades sociais, a figura do coronel representava o poder e a lei. Criava-se desta forma um quadro de injustiças que favorecia o banditismo social. Pequenos bandos armados, chamados cangaceiros, insurgiam-se contra o poder vigente e espalhavam violência na região. Eram freqüentes, também, os atritos entre famílias tradicionais devido às questões da posse das terras, às invasões de animais e às brigas pelo comando político da região. Num desses confrontos, o pai de Lampião foi assassinado. Para vingar a morte do pai, entre outros motivos, Lampião entra para o cangaço, por volta de 1920. No princípio segue o bando de Sinhô Pereira. Mostrando-se hábil nas estratégias de luta, assume a chefia do bando em 1922, quando Sinhô Pereira deixa a vida do cangaço.
Lampião e seu bando vivem de assaltos, da cobrança de tributos de fazendeiros e de "pactos" com chefes políticos. Praticam assassinatos por vingança ou por encomenda. Pela fama que alcança, Lampião torna-se o "inimigo número um" da polícia nordestina. Muitas são as recompensas oferecidas pelo governo para quem o capture. Mas as tropas oficiais sempre sofrem derrotas quando enfrentam seu bando. Como a polícia da capital não consegue sobreviver no sertão árido, surgem as unidades móveis da polícia, chamadas Volantes. Nelas se alistam os "cabras", os "capangas" familiarizados com a região. As volantes acabam tornando-se mais temidas pela população do que os próprios cangaceiros. Além de se utilizarem da mesma violência no agir, ainda contam com o respaldo do governo (João F. Passos presenciou vários atos de violência praticados por membros da Volante). Lampião ganha fama por onde passa. Muitas são as lendas criadas em torno de seu nome. Por sua vivência no sertão nordestino, em 1926, o governo do Ceará negocia a entrada de seu bando nas forças federais para combater a Coluna Prestes. Seu namoro com a lei dura pouco. Volta para o cangaço, agora melhor equipado com as armas e munições oferecidas pelo governo.
Em 1930, há o ingresso das mulheres no bando. E Maria Déia, a Maria Bonita, torna-se a grande companheira de Lampião.
Lampião tem suas regras, sua cultura e sua moda. As roupas, inspiradas em heróis e guerreiros, como Napoleão Bonaparte, são desenhadas e confeccionadas pelo próprio Lampião. Os chapéus, as botas, as cartucheiras, os ornamentos em ouro e prata, mostram sua habilidade como artesão.
Após dezoito anos, a polícia finalmente consegue pegar o maior dos cangaceiros. Na madrugada do dia 28 de julho de 1938, a Volante do tenente João Bezerra, numa emboscada feita na Grota do Angico, interior de Sergipe, mata Lampião, Maria Bonita e parte de seu bando. Suas cabeças são cortadas e expostas em praça pública, em Piranhas. Cangaços para todos os gostos - (extraído de um artigo de Marco Bonetti)
Margem do São Francisco, próximo à grota de Angico, no município Poço Redondo, onde morreu Lampião. "Grota não é gruta". Ali se escondia o Rei do Cangaço e outros 29 cangaceiros e 5 mulheres, no dia 28 de julho de 1938, quando duas colunas de soldados comandadas pelo tenente João Bezerra da Silva cercaram o local munidos de fuzis e metralhadoras, e começaram a disparar uns antes outros depois mas todos na direção do "bandido". Aos primeiros tiros Lampião tombou morto.
Chegara o fim do Rei do Cangaço. Um daqueles homens que em determinado momento da vida consegue desagradar desde a todos os homens da volante até o presidente Getúlio Vargas. Os autores que abordam sua morte se perguntam por que ele morreu ali, em que errou. A pergunta mais original é saber por que demorou tanto acontecer. Para chegar até ali, a polícia extraíra de um coiteiro informação preciosa ao preço de tomar também dele unhas arrancadas à faca, e alguns furinhos pelo corpo, em requintes de torturas policiais dignas do tempo da ditadura militar no país.
O troféu: 11 cabeças, 2 de mulheres, 9 de homens, incluindo a do chefe Virgulino Ferreira, o Lampião, levadas em cortejo triunfal. No início, desfilaram por cidades de Alagoas, até a Capital Maceió. Mais tarde, os restos de Maria Bonita e Lampião foram para o Instituto Nina Rodrigues, em Salvador, onde ficaram até 1969.
Ficar no Instituto Nina Rodrigues tem boa explicação. Não se trata de um lugar qualquer. O Nina Rodrigues representa um dos pontos altos no Brasil do casamento entre medicina e direito, ou estudo da criminalidade, e tem por origem o tempo em que o positivismo estava não só em moda, mas também no poder. As cabeças enviadas para lá eram medidas, pois a partir do estudo de diâmetros ou formatos dos crânios, acreditava-se poder prever traços que teriam por resultado a tendência à criminalidade. Além de Lampião e Maria Bonita, passaram por ali anteriormente as cabeças de Antônio Conselheiro e outros homens não tão conhecidos, que tinham por traço comum o fato de serem vistos pelo poder como excrescências genéticas que resultaram em traços violentos e em criminalidade. O último caso famoso de vísceras ali estudadas foi o de PC Farias.
A família de Lampião ganhou o direito de retirar dali os despojos de seus mortos depois de 31 anos. Só em 1969 os restos ganharam repouso, no cemitério das Quintas, em Salvador. Os criminosos eram dissecados depois de mortos e tiveram de deixar como herança a luta da família para garantir seu sossego. Contra eles, os heróis das volantes. Aqueles que subtraíam aos cangaceiros o peso dos aiós, alforjes feitos de uma raiz resistente. Desse material que dizem ser ouro, dinheiro e pedras de valor, pouco se sabe, e quase ninguém viu. A neta de Lampião, Vera Ferreira, conclui em seu livro sobre o avô que "todos escondiam como podiam o que roubavam dos cadáveres dos cangaceiros". Sobraria espalhado pelo chão da batalha o que nem mesmo a volante quis. Metal menos nobre. Os corpos pesados de chumbo. Corpos mortos. Mitos vivos.
Hoje, um grupo de arqueólogos tenta localizar os restos mortais ou indícios daquele pedaço de história desprezado. Não adianta. Ali, o tempo trouxe a paz aos corpos. E vida aos fatos recuperados pelos depoimentos dos sobreviventes.
Sabe-se, por exemplo, que Maria Bonita não morreu na batalha. Foi ferida por um tiro nas costas. Mas em vez de presa, foi degolada pouco depois. Ato de bravura comum para a época, se pensarmos que 40 anos antes, as mulheres, em Canudos, adentravam com filhos no colo em casas ardendo em chamas da guerra e da destruição, conforme depoimento de Euclides da Cunha. Mais mitos. Sabe-se que os cangaceiros eram protegidos por coiteiros, que recebiam dinheiro para escondê-los em sítios afastados das cidades e vilas, e para levar-lhes comida, armas e munição, como aquele Pedro Cândido que delatou o cangaceiro depois de ter unhas e entranhas arrancadas. Sabe-se que as volantes eram grupos de soldados tão ou mais temíveis que os cangaceiros, que roubavam em nome das perseguições que faziam, e que lutavam como bichos no solo seco da caatinga atrás dos fora-da-lei.
Sabe-se que grota é uma formação rochosa semelhante a uma gruta, só que mais aberta, um vale profundo. E em lugares como aquele ali, os cangaceiros tinham seu repouso de guerreiro. Banhavam-se à exaustão com perfume, para promover seus bailes perfumados animados ao som de um tocador da região. O perfume daquele dia perdeu lugar para o cheiro de carne putrefata que por muito tempo ali cheirou.
Mas muito não se sabe. Ou poucos dizem saber. O guia da Grota do Angico arrisca-se em reproduzir a tese de que a ordem de matar Lampião partiu pessoalmente de Getúlio Vargas, já que, em 1939, os interventores de Sergipe e Alagoas protegiam o bandido em troca de favores. Um candidato a prefeito de Piranhas, a cidade emparelhada a Canindé do lado alagoano do rio, diz que Lampião era amigo dos poderosos, gente que contava com ele para assassinar inimigos políticos e lhe dava guarida. Aliás, muito não se sabe também no presente.


SÍTIO DO VOVÔ

Por John Ulic Burke (1924-1987)

Em novembro de 2005, Thomas encontrou, entre antigos documentos guardados por Henrietta, um manuscrito de 10 páginas intitulado "Sítio do Vovô", escrito de próprio punho por seu irmão, John Ulic Burke, provavelmente por volta de 1976. Tratava-se de uma historinha infantil, inteiramente baseada em pessoas reais e "personalidades" animais que viviam no sítio da família Burke em Mogi das Cruzes. Infelizmente, as páginas estavam bastante danificadas pela ação do tempo, e para evitar que viessem a acabar se perdendo para sempre, Thomas digitalizou-as e transcreveu-as.

Transcrição, com algumas pequenas correções:

Sítio do Vovô

No último piquenique que vocês, sobrinhos meus, fizeram no sítio do vovô, devem ter notado que poucos dos bichinhos que lá moram se fizeram ver. É que são muito ariscos, não se mostrando com facilidade, nem mesmo para o titio. Mas para que vocês os conheçam melhor, vou contar historinhas de alguns deles.
Na varanda da casa do vovô, mora dona Curuira e sua família. Dona Curuira, depois de consultar seu marido, resolveu fazer seu ninho e criar os filinhos num canto por cima de um caibro do telhado da varanda, bem perto da janela do quarto do vovô e da vovó.
A escolha foi bem pensada, pois o vovô não deixa ninguém fazer mal aos bichinhos moradores do sítio e tem predileção especial pelos passarinhos.
Dona Curuira é um passarinho miudinho marrom, muito meiga, bondosa, que só fala bem dos outros. Quando ela precisa sair de casa para procurar comida, tem certeza que seus filinhos estarão bem em segurança. Por sinal, quem contou que morar perto do vovô é bom, foi o Teobaldo, e a comadre Tesourinha confirmou.
Teobaldo é uma rãzinha [seu nome verdadeiro era Calaveras, dado por Mr. Burke] que mora na cozinha da vovó dentro de um vaso de pedra-sabão, que foi trazida lá de Minas Gerais. A pedra-sabão não é de sabão, não, é apenas uma pedra meio mole quando é tirada da pedreira e que endurece depois. Enquanto a pedra fica mole, é fácil fazer o vaso.
A vovó usava o vaso para ter uma folhagem que caia dos lados e que brotava de uma batata-doce. Sempre fica com um pouco de água para refrescar as raízes da planta.
Um belo dia, o Teobaldo, muito curioso, se esgueirou por baixo da porta e foi investigar a cozinha. Como ele tem uns discos nas pontas dos dedos que grudam nas coisas quando ele quer, não teve dificuldade de subir em tudo. Era uma tarde muito quente e quando o Teobaldo descobriu aquela linda piscina e enfeitadinha de ramagens de bata-doce, não teve dúvidas: tshibum, lá foi ele para dentro.Tanto gostou, que não percebeu passar o tempo e quando deu por si a vovó já estava entrando na cozinha e não dava mais para fugir sem ser descoberto.
O Teobaldo se encolheu todo e ficou bem escondidinho dentro do vaso com o coraçãozinho batendo como pipoca pulando na frigideira.
A vovó deu uma arrumação na cozinha e o Teobaldo, vendo que não foi notado, foi sossegando. Mas de repente a vovó veio para o lado do Teobaldo com uma caneca de água na mão. Ela ia colocar mais água no vaso, que agora era esconderijo da rãzinha, após ter sido sua piscina. O Teobaldo ficou com tanto medo que nem se lembrou de pular, e quando a vovó chegou perto e ia pôr a água, viu o coitadinho todo encolhidinho e, oh, que maravilha, sorriu! Não colocou água para não assustá-lo mais e saiu da cozinha. O Teobaldo, mais do que depressa, sumiu dali.
Mais tarde, ele se lembrou do sorriso da vovó, das folhagens, da água fresquinha, das paredes grossas do vaso de pedra-sabão, e numa tarde quente não resistiu e voltou. Desta vez teve menos medo e como ninguém o enxotou, foi se sentindo aceito e começou a ser freqüentador assíduo da piscina, que já era sua. Gostou tanto, que nos tempos de calor dormia ali mesmo.
Numa tarde, quando o Teobaldo estava todo à vontade terminando seu banho de sol, o titio, que não sabia nada da estória, foi olhar dentro do vaso. Não sei dizer quem ficou mais espantado, o titio ou o Teobaldo.
O Teobaldo deu um enorme de um pulo, passando bem perto da cara do titio; caiu em cima da mesa e dali pulou para dentro de uma das botas do vovô e, se pondo bem no fundinho, no lugar dos dedos do pé, ficou ali quieto ouvindo o que estavam falando dele.
O vovô e a vovó tiveram que contar para o titio a estória todinha do Teobaldo, inclusive que ele era mulher e não homem. Souberam do fato somente muito depois que tinham posto o nome nele, e como todos aceitaram o nome, não quiseram mudá-lo. O titio não estranhou muito, pois já havia sido apresentado a um gato muito macho na casa do Laércio e dona Beth, que só atende pelo nome de Brigite.
Mas lá estava o Teobaldo no fundo do pé de bota ouvindo a discussão entre o titio e o vovô. O titio queria virar a bota para ver o Teobaldo, e o vovô não deixava. No final ganhou o vovô, pois a bota era dele, e se ele queria emprestá-la para o Teobaldo, estava no seu direito.
Pois foi esse mesmo Teobaldo que contou para dona Curuira que o vovô e a vovó gostavam dos animais. A dona Tesourinha, mais do que depressa, entrou na conversa e contou sua estória.
A dona Tesourinha gosta muito de viajar. Todo ano ela faz uma viagem e na volta procura um lugar bem sequinho para fazer seu ninho. Dona Tesourinha é uma andorinha muito elegante, cujo marido só anda de fraque e camisa engomada, e ela só usa vestido de saia comprida com cauda dividida ao meio. Quando ela voa, a cauda fica dividida, parecendo uma tesoura de costura de longe. Daí seu nome.
Na primavera de um ano que já ficou muito para trás, ela chegou e fez seu ninho na chaminé da lareira da sala de jantar do vovô, sem ao menos pedir licença. Coisas de gente rica. Criou duas filhas e dois filhos, e pelo meio do ano foi viajar. Não disse até logo, nem muito obrigado. Pouco estava sabendo que o vovô e a vovó gostavam de fazer fogo na lareira nas noites frias, e que não o tinham feito para não perturbá-la com a fumaça. Não tinha consciência que seus filhos, como todas as crianças sadias, tinham feito algazarra na hora de repouso do vovô depois do almoço. Nem procurou saber. Quando chegou a hora de passear, lá se foi ela com a família, e nem ao menos varreu a sujeira que ficou para trás.
Os filhos cresceram, casaram, e foram cuidar da vida. O casal voltou no ano seguinte e ao procurar a chaminé da lareira, a encontrou limpinha, varrida, sem nem um cheiro de fumaça, pois o vovô não permitiu que ninguém acendesse o fogo, para que quando Dona Tesourinha voltasse sua casa estivesse em ordem.
"Foi uma lição que me deram", disse dona Tesourinha a sua comadre dona Curuira. "Perdi boa parte do meu orgulho. Nunca mais chego ou saio sem cumprimentar e agradecer a hospitalidade. Boa gente! Posso sair para as compras e deixar tudo destrancado, que não mexem em uma palha sequer. E a segurança? Todos os netinhos do vovô sabem que no sítio ninguém pode caçar passarinhos. Comadre, faça seu ninho aqui, que você vai gostar."
Dito e feito.Todo ano dona Curuira faz seu ninho bem pertinho da janela do vovô e da vovó. Dona Tesourinha, um ano faz seu ninho na chaminé, outro ano não vem, pois não perde essa mania de viajar, mas sabe que o vovô e a vovó, por mais frio que passem, não farão jamais fogo na lareira sem primeiro consultá-la.
No sítio existem muitos outros personagens que não vivem assim tão pertinho do vovô e da vovó. Gostam de manter uma certa independência. Alguns têm nomes, outros não.
Um tatu, que tem mania de cavar túneis, está empenhado na construção de um metrô no matinho para cima da bica de água. Passa o dia todo metido nos seus buracos e só sai de noite para passear. A titia já pôs nome nele de Paulo Maluf. É o único que tem sobrenome, igualzinho a gente grande.
O Paulo Maluf (Deus nos livre de chamá-lo apenas de Paulo ou de Maluf) gasta de, lá pelas duas horas da madrugada, passear pela calçada da casa do Pedro Conceição, ao lado da casa do titio. Quem não gosta da estória é a Pipoca, que faz uma barulheira danada, pondo a boca no mundo.
O Pedro Conceição é uma bondade de preto, magro, muito forte, com cabelos começando a branquejar. Toma conta do sítio, não deixando faltar nada para as plantas e os bichinhos.
A Pipoca é uma cadelinha amarela que ficou sabendo, não sei como, que o Pedro Conceição estava necessitando de ajuda, pois mora sozinho.
Foi chegando devagarinho, muito humilde, sem coragem de pedir para ficar. Quando o Pedro saiu para trabalhar, lá foi ela atrás, sempre guardando uma distância respeitosa. Na hora do almoço, apesar da fome, não pediu nem um pedacinho de pão. O Pedro, que tem um coração deste tamanho, não resistiu e repartiu seu almoço com a Pipoca, na sombra da jabuticabeira. Quando voltou para casa à tardinha, Pipoca foi atrás. Deitou-se no terraço em frente à porta como se estivesse dizendo: este dono é meu e eu vou guardar sua casa.
Pipoca conquistou o coração do Pedro e de todos. Já tem sua casinha de madeira, pintadinha, com seu nome sobre a entrada. Nunca contou de onde veio nem do seu passado, e também ninguém vai perguntar. Só sabemos que é boa, paciente, meiga, humilde, ótima mãe.
O único capaz de tirá-la do sério é o Paulo Maluf. Pudera! Ela morre de medo que ele invente de estender uma linha do seu metrô para baixo da casa do Pedro.
Por falar em túneis, a Pipoca conhece o assunto bem. Quando foi ter cachorrinhos, ela cavou um bonito túnel no barranco que fica defronte à porta da cozinha da casa do Pedro Conceição e fez um quarto bem quentinho para os filinhos.
Faz tempo que o titio não vê a Dina e seu filinho. Dina é uma lagartixa de estimação. Seu nome foi dado pelo primo de vocês, o Pedro Paulo. Disse que parecia um dinossauro em miniatura, daí o nome de Dina.
Quando o titio e a titia moravam no sítio, antes de mudarem para São Paulo, a Dina fazia companhia e se encarregava de livrar a casa das moscas, mosquitos e outros insetos. Era bastante tímida, parando pouco para conversar. Acredito que está bastante zangada conosco por termos mudado para a capital. Quando vamos ao sítio, não tem se mostrado. Qualquer dia vou marcar uma entrevista com o Jacaré lá da lagoa, para ver o que ele aconselha.
Para falar com o Jacaré, só marcando entrevista mesmo. Oh, que indivíduo arredio que é. Não fala com ninguém. Pouquíssimos já o avistaram. Acredito que ele acha que o que é raro é caro, e se valoriza por aparecer pouco. Ficou sendo uma espécie de mito. Eu acredito que ele é mesmo muito sabido. Já viu o que aconteceu para seu primo que vivia em um bueiro, por onde o córrego que nasce na lagoa do sítio passa por baixo da estrada de rodagem, e não quer que lhe aconteça o mesmo. Fica bem quietinho, sem fazer como a dona Saracura, que toda tardinha avisa que está lá pelas taboas da lagoa. Não precisa fazer muita bulha para ir vivendo sua vidinha calma. Ele, melhor ainda do que o Pedro Conceição, sabe onde ficam aquelas gordas tilápias de quilo. Ninguém bole com ele, e ele não bole com ninguém.
Por falar em peixe, o único que tem nome e não pode ser pescado é o Big Hercules. É uma carpa grande que o titio de Campinas deixou na lagoa para tentação constante do senhor Jacaré.
Qualquer dia, não sei não, o Jacaré vai pegar o Big Hercules dormindo com o lombo fora da água tomando sol e não vai resistir.
Qualquer dia, quando o titio tiver tempo, vou contar a vocês, meus sobrinhos, ainda muitas estórias de outros habitantes do sítio. Existem os preás sem rabo, os gambás, as corujas, as cobras, aranhas e muitos bichos mais. Todos vivem na mais perfeita ordem, respeitando-se mutuamente. Ninguém ainda foi mordido por cobra ou aranha, a não ser o Pedro Conceição, caso esse que conto logo mais.
Os bichinhos costumam sair do caminho quando alguém passa, ou darem aviso que ali estão, para que a gente não os pise.
O caso do Pedro foi puro acidente. A dona Aranha estava com muito frio uma noite, e resolveu procurar um cantinho mais quente. Entrou por baixo da porta no quarto e entrou numa das botas do Pedro Conceição. Não tinha intenção de ocupar a bota definitivamente, e ela não queria acordar o Pedro, que dormia gostoso, para pedir licença. Era intenção de dona Aranha levantar bem cedinho e sair como entrou. Mas o Pedro levantou mais cedo do que ela e, ainda com sono, quis calçar a bota com dona Aranha ainda dormindo dentro dela. Dona Aranha, apesar de ser boa pessoa, é dessas velhas meio rabugentas, sempre prontas a revidar ataques reais ou imaginários. Quando sentiu o pé do Pedro sobre as costas, acordou assustada e, sem pensar que o Pedro não teve intenção de machucá-la, largou uma ferroada no dedão do pé do Pedro. Foi aquela confusão. Dente de quem só vive tecendo teias para pegar os insetos envenena mesmo. O pé do Pedro inchou e as desculpas de dona Aranha não é que iriam desinchar. Precisou de injeção na farmácia da cidade. Mas tudo acabou bem, apesar do Pedro e dona Aranha se tratarem com muita reserva desde então.
Os únicos bichos que não têm vez no sítio são as formigas saúva. Não sei qual o motivo, mas o vovô quando se mudou para o sítio muitos anos antes de vocês terem nascido, já trouxe uma vendeta antiga com a raça das saúvas. Deve ser o único defeito do vovô, pois ele gosta e protege todos os bichos. Mesmo das formigas em geral, ele não tem raiva. É só de saúva. Ele não conta o que houve entre eles. Só sei que o vovô vive passeando lá pelo sítio, e quando encontra um olheiro de saúva, lá vem o grito: "Pedro, oh Pedro Conceição, olha a saúva!" Lá vai o Pedro, que não gosta de matar bichinho algum com o formicida.
Não sei quem vai ganhar essa guerra, mas suspeito que não vai ser o vovô, não. Não que eu tenha coragem de dizer isso a ele, e proponho que vocês também fiquem de bico calado. Afinal de contas, quando a gente atinge uma certa idade tem direito a certas idiossincrasias. Vai ver que ele também não leva as coisas tão a sério.


MAIS QUE MIL PALAVRAS

Além das fotos e figuras inseridas ao longo do texto deste livro, os Burke guardam muitas outras fotografias dos primeiros tempos da família no Brasil. Algumas delas estão nesta coletânea, onde falam muito de perto aos corações daqueles que foram seus protagonistas. Para as futuras gerações, provavelmente, essas imagens não serão mais que meras curiosidades sobre a história dos primeiros Burke brasileiros, mas, mesmo assim, eles esperam que elas continuem a dizer algo aos seus corações.

Dos sete primeiros Burke brasileiros, cinco (Mary, Peggy, John, Carlito e Teta) nasceram quando a família morava em Santo Amaro, e dois (Tommy e Eddy) nasceram quando ela vivia em Água Fria. Nesta foto tirada em 1934, estão: Teta, com 10 anos, segurando Eddy, com 2 anos; Carlito, com 8 anos, abaixando-se para pegar alguma coisa, e Tommy, com 3 anos, olhando para o fotógrafo. Em maio do ano seguinte, Carlito morreu de leucemia.

Depois que os Burke passaram a viver no campo, sempre tiveram alguns cavalos. Nesta foto de 1935, Eddy monta o imponente Magnésia e Tommy o decrépito Branquinho. Num passeio até Pires, a sela virou, e Tommy ficou pendurado de cabeça para baixo sob a barriga do Branquinho, com um pé entalado no estribo, mas depois de algum tempo o pangaré parou e Tommy conseguiu se soltar, com apenas um grande susto.

Naqueles tempos não se podia comprar sorvete em Água Fria. Os Burke tinham uma máquina rústica de fazer sorvete. Era uma tina de madeira, no interior da qual havia uma cuba de aço inox, no interior da qual havia umas pás movidas por uma manivela. Na cuba, colocava-se a mistura, e ao seu redor, colocava-se gelo picado. Depois de cerca de uma hora de muito esforço virando a manivela, conseguia-se um bocado de sorvete cremoso. Esta foto foi tirada logo depois de retirar o sorvete da máquina. John (à esquerda) lambe o dedo, Teta (à direita) e Tommy (à esquerda) lambem as pás; Eddy prepara-se para dar um espirro, e Peggy diverte-se olhando a cena.

Nos primeiros anos depois de John Ulic Burke e Emma Anna Roggemann terem se mudado para o Brasil, a nova família, que aqui se desenvolvia, costumava receber a visita de "Grandpa" (Vovô Charles Francis Burke – pai de John) e "Grandma" (Vovó Julia E. Martin – madrasta de John). Eles viajavam de navio (a aviação comercial estava apenas começando). Nesta foto, de 1936, aparecem (a partir da esquerda): Emma, Júlia e Tommy. Estão no tombadilho do navio no qual Julia, que tinha ficado viúva no ano anterior, ia regressar aos Estados Unidos depois de sua visita ao Brasil.



Os Burke moraram em Perus de 1939 a 1941, na chácara destinada ao superintendente da fábrica da Cia de Cimento Portland Perus. Nesta foto aérea, a chácara aparece no alto do morro e entre nuvens brancas de finíssimo pó de cimento, saídas das chaminés da fábrica. O pó ia se depositando sobre as casas, e, com a umidade, formava uma crosta dura e esbranquiçada. O largo caminho passava em frente ao portão da chácara e descia até a fábrica, distante 1 km, aproximadamente.

Esta foto foi tirada na chácara de Perus em 1940. John (de terno) está ao lado de João Passos; Tommy veste o uniforme do Colégio São Bento; Eddy, de terninho claro, está ao seu lado. Atrás do Eddy está Rosa Suzuki. A menininha que aparece na frente é Suzy, filha da Rosa.
No ano seguinte, Teta se casou com João Passos, que trabalhava na Estação Perus, da SPR – "São Paulo Railway".


Em 1940, Peggy estava "quase noiva" de Orlando Graner, um estudante de medicina. Naqueles tempos, as moças não podiam ficar a sós com os rapazes, e Tommy-Eddy (acompanhados de Wolf) costumavam acompanhar o par por toda parte ¾ serviam de "vela", como se dizia. Pouco tempo depois que esta foto foi tirada, Peggy foi para Convento das Cônegas de Santo Agostinho, para se tornar freira, onde permaneceu até 1970. Algum tempo depois de deixar o convento, casou-se com Victor Franck.


Os Burke costumavam passar suas férias de julho na praia. Nos primeiros anos iam à Guarujá, depois à Bertioga. Quando começaram a freqüentar Bertioga, ficavam na "Pensão Bessa", de Ronald Besser, pegada ao forte São João (construído em 1547, o mais antigo do Brasil), onde hoje está o Parque dos Tupiniquins. Depois, passaram a se hospedar na "Pensão Paulista", uns quinhentos metros adiante, com frente na praia. A Pensão pertencia a Elias Nehme, que também era o dono do único armazém de secos e molhados da vila. O armazém ficava ao lado do pontal de embarque-desembarque das lanchas que faziam a única ligação entre Santos e o Distrito de Bertioga. Nesta foto, de 1940, tirada em frente da Pensão Paulista, está a dupla Tommy-Eddy.


Em 1949, Tommy-Eddy, com alguns amigos, acamparam na Prainha (do lado de fora da Ilha de Santo Amaro, em frente da Bertioga). Foi nesta canoa, emprestada de um caiçara, que Tommy e Milton Veras, uma manhã, atravessaram o canal para comprar pão e um filme fotográfico na vila. Como não encontraram o filme, foram até a colônia de férias do SESC, onde havia uma lojinha que vendia filmes. Lá chegando, Tommy viu e conversou com Maria Therezinha, com quem veio a se casar em 1954. Nesta foto, tirada da ilha, vê-se, do outro lado do canal, a vila de Bertioga, o morrinho Buriquioca (casa dos macacos, em Tupi, do qual se originou o nome Bertioga) e, ao fundo, a Serra do Mar.
Quando a família Burke mudou de Perus para São Paulo, foram morar numa casa alugada na Rua Tanabi (paralela à R. Turiassu, travessa da R, Germaine Buchard, no bairro Perdizes). A casa era um sobrado, com três pavimentos. Esta foto foi tirada em 1943 na entrada da casa, e nela estão Mr. Burke, Tommy e Eddy. Em frente deles, vê-se uma grande pedra de calcáreo branco, encontrada numa das pedreiras de Água Fria. Nessa ocasião, Mr. Burke estava morando sozinho em Água Fria e vinha visitar a família nos fins de semana.





Quando Tommy e Eddy cursavam o "Científico" no Colégio São Bento, costumavam passar as férias em Água Fria. Em companhia de Milton Veras (filho do médico da Cia de Cimento Perus), viviam suas aventuras "naturistas" de jovens. Uma delas era irem nadar no Rio Juqueri, perto da estação Entroncamento, da Estrada de Ferro Perus-Pirapora (cerca de 5 kms de Água Fria). Gostavam de mergulhar de cima da ponte, onde aguardavam a passagem de um trem, saltando no último instante, antes de serem atropelados, para desgosto do maquinista, que tocava desesperadamente o apito da locomotiva ¾ "O primeiro a pular é um covarde", diziam ...


Quando Tommy se formou no Colégio São Bento e foi estudar Agronomia no Rio de Janeiro, Eddy mudou-se para o sítio em Mogi das Cruzes, para começar uma granja de galinhas. Nesta foto, de julho de 1952, Eddy (com um machado no ombro) está entre Tommy (com a foice) e "Téco (Carlos Iriarte, guatemalteco, colega do Tommy). O menino é o Joãozinho (J. Burke Passos). A velha casa de taipa ("casa do Papai Noel"), que aparece entre o que restou de um pomar decrépito de pereiras, pertencera ao velho de barbas brancas, seu Hernesto. Em 1955, quando Tommy, já formado e casado com Maria Therezinha, veio morar no sítio, eles demoliram a velha casa e limparam toda a área para plantar batata, amendoim, milho, pimentão etc.
Tommy e Eddy sempre gostaram muito de pescar. Desde pequenos, e toda vez que surgia uma oportunidade, pescavam em qualquer lugar em que houvesse algum tipo de peixe. Em 1998, em companhia do Paulinho e de um amigo ("a quadrilha") foram pescar no Pantanal de Mato Grosso, no Rio Cuiabá , na região do município de Barão de Melgaço. Foram até Cuiabá de avião comercial e de lá, de caminhonete, por uma estradinha terrível, até a pousada do Rio Mutum, onde se hospedaram para uma pescaria de quatro dias.
No dia da volta, a condução que devia levá-los de volta ao aeroporto não apareceu. A proprietária da pousada pediu por radio a vinda de um táxi aéreo de Santo Antônio de Levergê, para apanhá-los. O percurso desde a pousada até o pasto de pouso do táxi aéreo, foi feito numa grande "voadeira" com dois motores de popa, atravessando a Baia de Cia Mariana e subindo um trecho do Rio Cuiabá. O pequeno avião pousou no pasto de uma fazenda próxima, no qual os quatro passageiros, com toda sua tralha e bolsas cheias dos dourados que haviam pescado, e mais o piloto, cheio de cicatrizes no rosto, espremeram-se para o vôo de retorno. Não sem algum suspense e muitos pulinhos, o aviãozinho recheado finalmente ganhou altura e seguiu acompanhando o curso do Rio Cuiabá até Santo Antônio de Levergê. Ao avistar a pista asfaltada, o piloto dirigiu o avião diretamente para ela, e quando estava quase a tocar a pista,
desviou-o para o lado e pousou na faixa de areia ¾ "É pra economizar pneu. O asfalto novo é muito áspero", explicou o piloto. Para três dos passageiros, esse foi o "vôo do terror", pois, com exceção do Tommy, era a primeira vez na vida que tinham posto os pés num teco-teco. De Santo Antônio de Levergê até Cuyiabá, eles e as tralhas foram transportados numa caminhonete (aquela que deveria tê-los apanhado na pousada do Rio Mutum.
No mapa e da região da aventura estão assinalados: a "Estrada do terror", por onde a quadrilha chegou até a pousada; o "Território de pesca da quadrilha" no Rio Cuiabá, e o percurso do "Vôo do Terror" de retorno à civilização. A "curva da bunda molhada" é onde Tommy ficou dependurado num galho sobre o rio com os fundilhos dentro d'água, quando ele amarrava o barco ao galho e o barco saiu de baixo, levado pela correnteza....).




Em 1997 a pescaria tinha sido na represa do Rio Tietê, em Pereira Barreto. Em quatro dias os Burke pescaram mais de 80 quilos de tucunaré. Nesta foto, tirada no fim de um dia de pescaria, estão: Paulinho (segurando o maior peixe do dia); Eddy (ao fundo), Tommy e Carlinhos.

Quatro casais que não pertenciam diretamente à família Burke, vieram se ligara a ela via casamento de seus filhos com quatro dos primeiros Burke brasileiros. Eles aparecem nesta página.

Nesta foto, de 1969 (nas bodas de ouro de John e Emma), vemos Walderino Vasconcelos Dantas (1880-1975) e Eulália Pedrosa Dantas (1895-1973) espiando por sobre seu ombro. Eles eram os pais de Cecília (1923) (ao lado), que casou com John Ulic Burke (1923-1982). Eulália era sobrinha de D. Paulo Pedrosa, abade do mosteiro São Bento. Eles viviam em São Bento do Sapucai. Muitos anos antes desta foto, Walderino tinha perdido completamente a visão.





Antonio Marçal da Silva (1898-1996) e Sylvina Maria de Souza (1900-1979), os pais de Maria Therezinha do Carmo (1931), que casou em 1954 com Thomas Joseph Burke (1931). Os pais de Antonio e de Sylvina eram portugueses da Ilha da Madeira. Esta foto é de 1977, e foi tirada na casa da filha caçula, Clarice.







Jacob Jorge (1908-1974) e Rachid Salomão (1899-1975), eram os pais de Elza Jacob Jorge (1934-2000), que casou em 1955 com Edward Burke (1932). Jacob e Rachid eram imigrantes libaneses, que se estabeleceram em Mogi das Cruzes. Esta foto foi tirada durante o casamento de Edward e Elza.







José Passos (1884-1946) e Maria Neves (1886-1979), nascidos na Bahia, os pais de João Ferreira Passos (1913-2001), que se casou em 1941 com Henrietta Burke (1924). (ver no Apêndice E mais sobre a vida aventurosa de João nos sertões do nordeste antes dele vir para São Paulo).

Nenhum comentário: